Um velhíssimo visitante - Boa-Nova - Um polêmico padre - Efeitos colaterais do cometa - Dois almofadinhas - Um autêntico caipira - Velhos cometas e chuvas de estrelas - E a cauda envolveu o Planeta! - Fenômenos estranhos - A aparição! - Halleyluia! - Ao amanhecer - Estranho sumiço... - O Fiore e seu primogênito - Prestação de contas - Caixeiros viajantes...
O Halley em 240 a.C. Arte: Murilo Martins e Rogério Borges, 1985 |
Do que posso adiantar inicialmente, diria que neste memorável período ocorreria um dos mais incríveis eventos astronômicos jamais vistos no Planeta. Nunca, num único mês, tantos olhos se voltaram para o céu noturno para vislumbrar algo tão magnífico — sim, amigos, trato do majestoso cometa Halley que, novamente, vinha nos dar o ar de sua graça, inda que seus “ares” não fossem bem-vindos por muitos...
Quando o mês das noivas teve início, e o cometa se tornou deveras comentado, o medo e a excitação das pessoas em geral atingiu o seu clímax. Só se falava nisto, nos botequins, nos jogos, nas farmácias, nas caçadas, nas pescarias, durante o café, a janta e o almoço, no trabalho, nas igrejas!... O que a maioria receava era que o cometa fosse mesmo se chocar contra a Terra. Outros falaram que ele não colidiria, mas sua cauda roçaria o planeta envenenando-o com seus miasmas. Um sabichão disse que para matar uma pessoa instantaneamente bastava uma gotícula de cianogênio na língua ─ justamente o gás que era encontrado na cauda do cometa!... A paranoia era tanta que se um sujeito de mente sugestionável saísse ao relento e mirasse o firmamento, lá estaria a própria espada do Juízo Final pairando acima de sua cabeça!...
Fioravante "Fiore" Dalto |
Emília Pierina Samazzo Dalto |
Campos da fazenda Morro Alto, vistos a partir de colônia, lugar por onde desfilava o locomóvel da fazenda, ótimos locais para se ver o cometa |
Na noite anterior ao apogeu da aparição, os colonos da Santa Escolástica decidiram fazer uma romaria com a intenção de aplacar as iras do cometa. Normalmente, nestes tempos, à hora da Ave Maria todos se recolhiam, mas o caso era uma exceção. Convidaram gente de toda a região: das fazendas São Joaquim, Belmonte, Morro Alto, Santa Clementina, Montevidéu, bem como os escravos libertos da fazenda Palmeiras, do Soares do Amaral. Do Lote (futuro Verde), onde o Fiore então morava, vieram ele e família, também as famílias dos Corte, D’Alessandri, Pacagnella, Menegazzo, e também um almofadinha que atendia pelo estranho nome de Constante Maurício.
O palco das histórias, com a fazenda Santa Escolástica ao centro, em mapa de 1907: matas, cafezais e escuridão propícia à observação do cometa. |
─ ...intão qué dizê qui o sinhô vortô pra nos visitá, Seu Nero? Qui bom sinhô, qui bom!
─ Eu vim aqui para a fazenda especialmente para ver o
cometa, pois lá em São Paulo há casas demais e há luzes elétricas de rua por
todos os lados. Aquela claridade toda atrapalha a visão do cometa, Seu
Benedito. Mas, por outro lado, li tudo sobre ele, tudo que me caiu nas mãos.
Estou preparadíssimo para vê-lo!
O negro não lhe poupou de
uma crítica:
─ Me descurpa dizê isso, mais o sinhô precisava vir de tão longe só pra vê o cometa? E Sum Paulo, pelo que eu ouvi o patrão dizê, ainda tem muito lugar sem luiz elétrica.
Naquela época, obviamente, não havia problemas com poluição luminosa, mas hoje o Nero teria razão, lembrando que dois italianos, Pierantonio Cinzano e Fabio Falchi, em seu First World Atlas of the Artificial Night Sky Brightness (2001) afirmaram que dois terços da população mundial não têm mais a experiência de uma noite escura!...
O Halley, visto clara e abertamente a partir de uma grande cidade, Nova Iorque, na Quinta Avenida da Broadway, em 20 de maio de 1910 |
E o negro, entusiasmado com o assunto, não parava de falar...
─ O ano passado, eu vi um quadro lá na fazenda do Rodorpho Coimbra, dotô aí da fazenda Montevidéu, um quadro d’um pintor que lá apareceu, um óme de nome isquisito, um tar de Maria-Gabrié, e... ─ o Nero complementou:
─ Marie-Gabriel
Biessy?
─ Isso! Esse memo! Pois então, sinhô Nero, eu tinha ido fazê uma entrega lá na Montevidéu, e vi o quadro exposto na sala, que era uma pintura feita de Sum Paulo à noite, co'as luiz elétrica acesa, e pur ele eu achei qu'elas são muinto fraquinha, pareceno luiz de lampião, tudo meio escuro. É pur isso qui eu imagino que elas num vão ofuscá o cometa não.
─ Mas se fosse uma iluminação igual à que teve na Exposição Nacional do Rio de Janeiro, há dois anos atrás, mal ia se poder ver o cometa.
─ Mais purquê o senhor diz isso, seu Nero?
─ O poeta Olavo Bilac escreveu na época que, lá na Exposição, as lâmpadas elétricas eram estendidas em varais por todos os lados, formando grandes massas de luz, e o efeito era tão forte que doía nos olhos!
À direita o Dr. Rodolfo Coimbra, em foto de 1909 |
"Nativa", quadro de Antonio Ferrigno |
A capela de Santa Cruz |
O locomóvel |
David Daltro, na casa dos 30 anos |
Marie-Gabriel Biessy |
─ Seu Nero, me
lembro que naquele dia na Montevidéu, eu tive a oportunidade de vê um outro
quadro muinto bunito do Maria-Gabrié, que ele havia acabado de pintá, que trazia
uma coisa curiosa.
─ Que coisa?
─ Num
sei se o sinhô sabe, mais os italiano aprendero a fazê feijoada co’a
pretaiada ─ e eles apreceia muito ela ─, e o quadro mostrava uma
famía de colono italiano preprano uma feijoada no meio da mata da fazenda ─
esse tar de piquenique qu'eles tanto gosta. Uma belezura de quadro!
─ Olha
que interessante, Seu Benedito! Mas, fiquei sabendo que esse pintor é visitante
contumaz da fazenda.
─ “Contu” o que,
Seu Nero?
─ Con-tu-maz, Seu Bendito, contumaz, aquele que visita com frequência um lugar.
─ Nossa, Seu Nero,
tem palavra prá tudo nesse mundo!
Sobre esta primorosa e desaparecida pintura, a Revista Ilustrada de junho de 1911, num ótimo documentário sobre Biessy, escreveu:
“E que amizade, que calorosa gratidão guardou para todos os seus
hospitaleiros modelos! Ao ouvi-lo contar, especialmente os dias deliciosos, as
noites admiráveis, que passou na fazenda Montevidéo, onde foi durante algumas
semanas amimado — é esse o termo que ele emprega — não se pode deixar de
compartilhar também um pouco de seus sentimentos em relação à hospitalidade
brasileira e de invejar esse viajante entusiasta.
Foi aí que ele pintou a ‘Feijoada’, essa clareira aberta na sombra verde de uma floresta virgem, entre árvores gigantescas, que as lianas envolvem em seus 'múltiplos tentáculos, e onde surgem, como cintilações de cores vivas, entre a folhagem, flores de púrpura e de neve, formando um cenário shakespeariano, cheio de misteriosa penumbra, onde os lenhadores, curvados para a marmita, que ferve, parecem preparar algum filtro de feitiçaria.”
A fazenda Montevidéu, em foto da década de 1970 |
─ Mas será que ele
vai fazer alguma pintura do cometa Halley, Seu Benedito?
─ Num sei dizê,
sinhô, mais é uma boa pregunta!
─ Se não fez,
deveria, já que ele, pelo que eu constatei lá na exposição em São Paulo, gosta muito
de fazer pinturas noturnas com luzes.
─ Ah, então o sinhô já visitô uma exposição dele?!
O homem esboçou um sorriso amarelo e, se recordando de um assunto
pertinente, acrescentou:
─ Eu
também visitei a Montevidéu muitos anos atrás, e tive a oportunidade de ver lá
um belíssimo quadro feito por um artista aqui de Piracicaba, o Almeida Júnior,
pintor que gostava muito de pintar quadros com temática caipira, e...
─
“Temá” o que, Seu Nero?
─
Te-má-ti-ca, Seu Benedito, temática, que vem de tema, de assunto.
─
Humm...
─ Pois bem.
Como eu ia dizendo, o quadro que eu vi fora pintado no início da estrada que
sai da cidade e vem para cá, alí onde fica a ponte Funda, sobre o Ribeirão das
Araras, e...
─ Sei,
sei, sinhô.
─ E, então, a pintura retrata esse lugar, bem onde fica o casarão do Antônio Gomes, e...
E o negro interrompeu de novo...
─
Conheçu, sinhô, cunheço, mas esse casarão, hoje, é do Lázaro Quintiliano, um lavradô!
─ Não sabia disso, Seu Benedito, mas voltemos ao assunto.
Então, o quadro, belíssimo, mostrava esse início de estrada, mas o tal renque
de bambuais ainda não existia, mas só a estrada do Morro dos Hugas e os pastos
à esquerda, com as pessoas, num dia ensolarado, indo pela “Estrada da Baronesa
de Arary”.
─ Nossa, sinhô, que pena que eu num vi esse quadro!
"A estrada da fazenda da baronesa de Araray". Almeida Júnior. 1899. |
─
Hummm, sinhô, esse negócio de traí a parcêra sempre acaba em tragédia memo! Cá
entre nóis, aqui na colônia tem um rocêro que tem uma muié bunita prá daná,
muié que tudo mundo é loco pur ela, e tem um italiano qu’eu conheço e fiquei
sabeno que morre pur causa da dita, e vive mandando versinho pr’ela. Hummm, se
o rocêro soubé, Deus do céu, vai saí morte aqui na Escolástica, mas morte por
tiro de pica-pau, pois o óme é caçadô!
─ Sim,
Seu Benedito, esse negócio de infidelidade conjugal acaba sempre numa divina encrenca,
e, versinhos carcamanos, não sei não...
─ Mais, sinhô Nero, mudano de assunto, eu mi lembrei agora: fiquei sabeno que a dona Mariquinha Olegário e seu esposo Bino Alves de Camargo é que vão bancá a reforma da capela, e até vão fazê uma torre de sino lá.
─ Que ótimo! Ela estava precisando mesmo, porque aquele barreado das paredes está numa situação lamentável, a ponto de elas ruírem!
─ Se me permite, sinhô, mudano de assunto, fiquei sabeno ─ e tá todo mundo falano ─, que o padre Amorim Correia rogou uma praga contra o cometa! Óia só!
Cônego Manoel Carlos de Amorim Correia |
“Em Araras, Amorim, percebeu a falta que fazia à população um hospital e, assim pensando, resolveu fundar uma Santa Casa de Misericórdia. Contudo, um grupo de ararenses já havia tomado a si a incumbência de prover a cidade de tal melhoramento. Será que a cidade foi informada dos acontecimentos em Bananal? Desgostoso e contrariado nos seus intentos, Amorim, solicitou sua transferência para outra paróquia e, o bispo de Campinas, Dom Nery, encaminha-o para Itapira, sucedendo ao padre Bento Dias Leme.”
Nisto, tal como no famoso conto do escritor Érico Veríssimo, em que o general Chicuta Campo Largo “correu a relho da cidade um juiz que teve o caradurismo de assumir ares de integridade de opor resistência a uma ordem sua”, ele comentou:
─ “Concu...”
o que, sinhô?
- Con-cu-pis-cen-tes,
que significa devasso, libertino.
─ Sim, sim, seu Benedito, inclusive foi ele quem conseguiu o maior sino da Matriz, que tem mais de 500 quilos. O então sino principal havia rachado, e ele, em contatos com o barão de Tatuí, obteve um novo por doação deste.
Em 13 de janeiro de 1961, no Tribuna do Povo, o colunista Maria Lúcia comentava esse belo feito do padre:
“TIVERAM excepcional
brilhantismo, as festividades em louvor da Senhora do Patrocínio, excelsa
padroeira de nossa cidade, naquele longínquo 8 de Dezembro de 1907, promovidas
pelos festeiros: Francisco José da Fonseca (o Chico Pinto) e D. Maria Soares de
Carvalho, juntamente com uma comissão de doze abastados fazendeiros do
município.
Era Vigário da
Paróquia de Araras, o Padre Manoel Carlos de Amorim Corrêa. Neste dia 8, depois
da missa das oito horas, o respectivo Vigário acompanhado das irmandades da
Matriz, e do povo em procissão, dirigiram-se à Estação da Companhia Paulista,
afim de receberem o novo e grande sino, doado à nossa Igreja, pelo Sr. Barão de
Tatuí, e que devia ser transladado processionalmenle da Estação ao Largo da
Matriz, com grande pompa. O sino fabricado na Holanda, pesava 560 quilos, foi
puxado por uma carreta própria, com seis bois.
Bem junto do
sineiro, esse precioso e tão útil presente recebeu a bênção do Padre Amorim,
tendo o ato sido paraninfado pelo doador Sr. Barão de Tatuí e a festeira D.
Maria Soares de Carvalho. (...)”
Mas acontece que na Santa Escolástica os comentários cometários estavam em alta, com todos a especular o espetacular astro, e tudo rendendo muitas histórias, e mais, atitudes hilariantes (e olha que a cauda do cometa mal havia roçado o Planeta…).
A fazenda Santa Escolástica |
O Halley entre as constelações, em 17-5-1910, Bahia, desenho do mineralogista Alpheu Dias Gonçalves |
Asher B. Durand, Kindred Spirits, 1849 |
─ Não faça isso, seu tonto! ─ advertiu o Pinocchio.
─ Fazer o quê?
─ Chupar cana e depois tomar leite! Não sabia que causa diabetes?!
─ Pinocchio, deixa de
ser mentiroso, rapaz! Onde já se viu dizer uma lorota dessas! Eu já ouvi falar
que não presta chupar manga e tomar leite depois, porque causa congestão, o que
também não acredito, mas manga com leite causar diabetes, essa nunca ouvi
falar!...
Vale lembrar que os fogos que ambos iam soltar, não era para festejar o cometa. Os leitores descobrirão o motivo em momento oportuno...
Um autêntico caipira
Naquela época, granjeava a Santa Escolástica de possuir uma outra santa, digo, uma mocinha por nome Juliana ─ diria, a musa daquelas paragens ─, a qual se regozijava de arrastar atrás de sua formosura uma plêiade de ciosos pretendentes, mocinha cuja beleza inquietava corações em toda parte onde pusesse seus pequeninos e graciosos pés. Por uma particularidade inocultável, tão inocultável que o pessoal da colônia logo notou, a encantadora tinha uma queda por passeios vespertinos, de modo que era passatempo da roceira sair aos finais de tardes em caminhadas pela alameda de abacateiros que ali existia. E foi num desses seus passeios que um certo almofadinha (me refiro ao Pinocchio) a viu. O fato se deu tal como no conto “O Jaó” do Arthur Azevedo, onde ele diz: “ele encontrou Mimi numa volta de estrada, e ficou impressionadíssimo por aquela surpreendente formosura do campo”. Agora, se me permitem, deixemos que o Valdomiro Silveira fale por mim:
Daí que a formosa, ao vê-lo (antes não o visse...), deixou escapar um sorrisinho convidativo ─ um desses gracejos carismáticos que nas conquistas amorosas atiçam deveras o desejo e não há homem do gênero invulnerável a eles. Linda e tentadora que era, no mesmo instante o Pinocchio a abordou, e, lançando mão das lábias em que era perito, deu início à sua investida:
─ Boa tarde, moça! É daqui mesmo, da fazenda?
─ Sim, nasci aqui.
─ Prazer, meu nome é Pinocchio. Qual tua graça?
─ O prazer é todo meu, e o meu nome é Juliana!
E, numa atitude de reverência, recuando dois passos esticando uma das pernas com a ponta do pé voltada para cima, fechou os olhos esboçando um largo sorriso com os lábio unidos, e abrindo-os, elogiou:
─ Nome lindíssimo: Ju-li-a-na! Por sinal, o meu nome predileto!
─ Obrigado! E você, é daqui de Araras mesmo?
─ Não. Sou de São Paulo.
O papo correu solto por longos momentos, e a uma certa altura, e ele contou à roceira o motivo de sua estada ali.
─ ...e então, também vais ver o cometa hoje, Juliana?
─ Estou louca para vê-lo, mas não sei se meus pais vão me levar. Eles são muito medrosos! Andei lendo muito sobre o cometa, de uns jornais que a dona da fazenda me deu! Vai ser lindo!
─ Que bom, gostas de ler!
─ Muito! Mas, me diga uma coisa: eu nunca vi um, mas é bonito esse cometa?
─ Tão lindo quanto esses longos cabelos ruivos que descem pelo teu corpo!
A mocinha corou-se...
Repararam, amigos? Lá em cima, enquanto o Halley arrastava sua imensa cauda, cá embaixo, o Pinocchio arrastava suas asas...
O Halley em 1910 |
─ Queres ir comigo ver o cometa? Eu te levo ao mirante da fazenda vizinha, a Morro Alto, e de lá o cometa poderá ser visto no melhor ponto da cidade, pois é o mais alto!
─ Eu gostaria, mas você acha que o bendito do Simplício vai permitir?
─ Quem é esse Simplício?
─ É o meu pai. Será que ele vai me deixar sair à noite,
em plena madrugada, e com um desconhecido? Acho impossível, Pinochio!
─ E se eu for falar com ele?
─ Pode ir, mas eu duvido que ele vai deixar.
─ E onde eu posso encontrá-lo?
─ Ele está lá em casa agora; vamos lá, mas...
─ Antes de mais nada, Juliana, ele é bravo?
─ O meu pai bravo?! Ih, coitado do meu pai!...
─ Caminho livre, então?
A roceira revelou um veio humorístico:
─ Homem pacato está ali: meu pai é incapaz de matar uma muriçoca!... Se alguém precisar dele para empurrar minhoca na descida, ele não serve!...
─ Há, há, há! Mas, por que dizes isso, Juliana?
─ Ele não gosta muito de trabalhar, e, por isso mesmo, não vê a hora que eu me case e alivie as despesas da família. E mais, tem uma queda danada por cachaça!...
Quase não escondendo um malicioso risinho de mofa, no que por pouco não enclavinhou uma mão por cima da outra, o malandro exultou:
─ Não me diga, Juliana!...
O palmeiral de Jerivás da Morro Alto em 1902. |
Ela mudou de assunto e soltou uma frase inesperada:
─ C'è un grande e bellissimo palmeto di Jerivás nella fattoria del Morro Alto, ma preferirei che fosse una piantagione di banane bionde proprio come te e tua madre, ma una mia piantagione...
─ O quê você disse? ─ perguntou o Pinocchio.
─ Aqui na fazenda tem um italiano meio maluco ─ um tal de Juó ─ que vive repetindo esta frase toda vez que me vê, e repete tanto, que eu até a decorei...
─ E o que a frase dizia?
─ Há um grande
e belíssimo palmeiral de Jerivás na fazenda Morro Alto, mas eu preferia que
fosse uma plantação de bananas loirinhas assim como você e tua mãe, mas uma
plantação minha...
─ Lá nas margens do rio Pinheiro em São Paulo está cheio dessas palmeiras, e eles chamam o lugar de Jeribatiba.
─ Outra das maluquices dele é sair por aí gritando “Viva o Pedro Banana!” Aqui ninguém sabe quem é esse sujeito.
─ Pedro Banana é o D. Pedro II...
─ Por falar nisso, ele sempre me diz que não gosta de palmeiras, mas sim de
bananeiras, mas reconhecia que a única palmeira que admirava era a
palmeira-imperial que o Dom Pedro plantara na fazenda Montevidéu quando visitou
Araras.
O morro da fazenda Morro Alto |
* * *
Simplício era casado com Marietta, mulher mais nova que ele e dotada de uma beleza estonteante, beleza esta que o punha inquieto, levando-o às raias do ciúme, à ponto de, às vezes, surrá-la quando percebia que ela se envaidecia com os olhares cupidos dos jovens da colônia. Tão provocante era a mulher que o tal do Juó ─ sujeito que vendia bananas na cidade ─, apaixonado que vivia, dedicou a sua musa uma poesia e se atreveu a enviá-la secretamente ─ uns riscados malucos a que batizou "Sunetto Futuriste (pra Marietta)" ─, cujo teor ela não entendeu patavina... Ei-lo:
Como se vê, o Juó foi impiedoso no desfecho... Por tais coisas, afirmar que a Marietta era um poço de castidade e de lealdade matrimonial, seria negar a veracidade que comungo com meus leitores, como se verá.
O Simplício, quando ela o conheceu, possuía uma fazendola e era senhor de algumas centenas de contos de réis, bens herdados do pai, mas perdera tudo após o casamento devido ao desamor pelo trabalho e a notória compulsão por caçadas e... por cachaça... Ainda assim, não creiam, amigos, que o nosso humilde caipira, por este seu currículo desabonador, fosse um sujeito caborteiro, mas tenham a certeza que ele era mais feliz que filho de padre... Simplício a amava, mas havia um porém, diria, uma nuvenzinha negra: o passado de Marietta... Felizmente, a italianada da colônia nada sabia deste lamentável outrora da companheira. Mas, amigos, vale dizer que nada mais sei da vida pregressa da bela Marietta, nem isto importa à narrativa, porém, é patente que a danada se regenerou. Seu único defeito, segundo o marido, era fazer café fraco, e tão fraco que ele mal conseguia sair do bule... Convém lembrar que o Simplício também era portador de outro defeito: na hora do repouso, quando o infeliz desfiava o rabecão, digo, quando roncava alto feito um cachaço ─ ronco de abalar as estruturas, de prateleiras e cristaleiras tremerem sensivelmente noite afora...
Desnecessário dizer que a filha puxou à mãe, e tão-somente à ela se devia a sua formosura. Assim posto, ninguém sabia como o feioso do Simplício conseguiu conquistar a Marietta, mas os leitores confirmarão mais adiante o porquê desse curioso fenômeno... Para usar uma expressão do citado Arthur Azevedo, o Simplício era um “desfavorecido da natureza”, tipo resultante da união desastrosa de certas partes do corpo vitais nas conquistas. Diziam as más línguas da colônia que o fato se devia por ela, tal e qual o marido, também ser deficiente no quesito inteligência, o que não era verdade, pois como vimos, na época do casório o Simplício possuía polpudos bens, portanto...
─ Mas como é que pode uma mulher bonita dessa casada com um capiau feioso desses?! Olha as orelhas do homem: com um par de orelhas desse dá para abanar café sem peneira!...
─ Há, há, há!... E quando ele sorri, então! Você reparou no tipo de sorriso que ele tem?
─ Que sorriso?
─ O "sorriso 1001”: um dente incisivo para lá, outro para cá!...
─ Há, há, há!...
─ Aquele italiano, o Salvatore, chama ele de topo gigio.
─ E o quê quer dizer isso?
─ Parece que é um rato orelhudo encontrado lá na Itália.
─ Procede...
Famosa ficou entre o pessoal da colônia uma conversa que ambos tiveram após se casarem ─ e não se sabe como esta conversa vazou e, inclusive, foi bater lá nos costados da Mantiqueira... Mas, rezava a lenda que ele, certa vez, dizendo a mulher sobre a qualidade dos filhos que teriam, afirmou que seriam frutos de sua inteligência somada à formosura dela, no que ela, querendo fazer um gracejo, disse que poderia ocorrer o contrário: os filhos nascerem com a inteligência dela somada à falta de formosura dele... O que eu sei dizer é que esta foi a primeira de uma das muitas surras que a atrevida Marietta levou do marido...
* * *
Ao chegar o almofadinha, lá estava o barba-rala ─ um autêntico caipira que não faria feio no "Urupês" do Lobato... Agachado à moda caipira ─ que cadeira de caipira é calcanhar ─, ao pé do cercado de bambus lá estava ele a pitar um palheiro ordinário, fumo ─ como diria o nosso bom Nelson de Farias ─, do tipo “bazé”, fumo fumacento e fedido prá danar... Com a aproximação da filha e seu pretendente, ele acertou com a unha preta do polegar a brasa do cigarrão, deu uma profunda tragada e, após, baforando forte, espanejou a mão para se livrar da fumaça e, então, se adiantou no cumprimento:
─ Taaarde, Seo moço!
─ Boa tarde! Meu nome é Pinocchio, e qual sua graça, amigo?
─ Simplício, às suas orde! Mais, inda qu’eu mal lhe pergunte, donde conhece minha fia, Seo Pinocchio?
─ Conheci hoje mesmo, e vim te pedir uma permissão.
─ Permissão! Que permissão, rapai?!
Uma pausa providencial aqui, amigos. Para usar pensamento do citado mestre Arthur Azevedo, diria que, sobre o pai de Juliana, seu "único defeito era ser fraco de inteligência, defeito que todos e perdoavam por não ser culpa dele." Já para a filha, para usar uma expressão, agora do bom Afrânio Peixoto, diria que, como as graciosas sertanejinhas de seus romances ─ aquelas que enlouqueciam os jovens visitantes da cidade ─ granjeava ela um “único pecado”: o “de ser bonita”...
A princípio, o almofadinha se enrolou ao fazer o pedido (afinal, convenhamos, naqueles tempos um pedido desses era uma verdadeira afronta):
─ Bem... é que... então...
─ Desembucha logo, Seo Pinocchio! Num se avexe não!
Sua velha cara-de-pau entrou em ação, na base do “ou vai ou racha”:
─ Bem, Seu Simplício, é que hoje de madrugada irei ver o cometa, e queria pedir tua permissão para levar tua filha comigo, já que tua filha disse que você e sua esposa não irão.
O caricaturável Simplício... |
O almofadinha quis gargalhar com a facilidade na resposta positiva, mas limitou-se a um sorriso afável... À esse "aprovo sim!”, foi impossível não notar que o moço teve um indisfarçável estremecimento de satisfação, mas se conteve:
─ Que ótimo, Seu Simplício, que ótimo! Mas, fiquemos combinados assim: lá por volta das 9 da noite eu venho buscá-la.
Surpreendentemente, o caipira falou:
─ Nossa, Seo Pinocchio , inda qu'eu mal lhe pregunte: num é muito cedo não prá vê o cometa não?
Novamente ele quis gargalhar, mas se limitou a dizer, digo, mentir:
─ Qual, Seu Simplício! Disseram que ele vai aparecer a noite toda depois das 10...
Nisto, lançando mão de uma tática apelativa, ele emendou:
─ Um momentinho, Seu Simplício, que eu vou buscar algo para o senhor.
E partiu o almofadinha para o outro lado da fazenda, onde estava o caminhão.
Nesse entremeio, entrando em casa afoito e arrastando sua embriaguez até a cozinha, o Simplício deixou-se cair exausto em uma cadeira, isto como se tivesse trabalhado o dia todo e não praticado halterocopismo, porém, teve forças para expectorar estas palavras:
─ Muié, acho que arrumei um bom partido prá nossa fia!
A esposa deixou escapar um comovente “oh!”...
O Pinocchio voltou rápido e com um embrulho, que prontamente entregou ao caipira.
─ Um presente para o senhor!
O Simplício abriu o embrulho e reconheceu de pronto a garrafa:
─ Nossa, uma cachaça do engenho aqui da fazenda Parmera, do João Soares do Amaral!
─ Exatamente: a melhor da cidade!
─ Sem duvida, Seo Pinocchio!
Marietta e Juliana |
Bem dizia o Fiore que o Simplício era um tonel de cachaça ambulante: o presente foi o que bastou para cair nas graças do matuto... Nesta hora, repentinamente, surgiram à janela a sorridente Juliana e atrás dela sua mãe, toda envergonhada, porém, esboçando um sorrisinho indisfarçável apesar do toucado com que cobria a boca. A cena compunha um quadro belíssimo, ridente e sugestivo, que só mesmo o Bartolomé Esteban Murillo para fazer outro igual. Ah, a bela Juliana... com aquele seu sorriso e aqueles olhares graciosos que prometiam mais do que deviam!
Se despedindo com exageradas mesuras, o almofadinha partiu, e partiu deixando a inocente Juliana cheia de sonhos no aconchego de seu quarto...
* * *
Antes da hora aprazada, eis o moço de volta... E veio ansioso, com aquela cara em cuja boca se esboçava um sorriso triunfante, tipo “É hoje!”... E tão seguro e ambientado estava que até tomou a liberdade de dar três buzinadinhas esganiçadas com aquela cômica corneta do Studebaker... A família apareceu à frente da casa, e o que se via agora eram mais três sorrisos, tão triunfantes quanto apalermados... Que o trio ignorava ser o moço portador de um belo auto-caminhão, algo tão raro naquelas paragens...
Atentem agora para a cena única: a do retorno do almofadinha e a inesperada recepção com que os pais da roçadeira lhe brindaram. Olha que dá até para pinçar uma passagem do nosso grande Amando Caiuby, de seu conto "Maneco Fera”, onde ele diz: “O carreiro e a mulher receberam-no com alegria." Isto foi um claro indício de que a esposa, igualmente ao marido ─ com quem compactuava nas “opiniães” ─, não fez qualquer objeção às intenções do moço, afinal... Assim, ao ver que sua filha ia sair de caminhão com um sujeito da cidade grande ─ um jovem bem aparentado, bem vestido e com um linguajar de pessoa culta ─, pensou que ter aquele rapaz por genro era o sonho dourado de toda mãe que se prezasse... E tanto que ela se adiantou na despedida, e, tão inocente quanto a filha, acenou com o toucado com que cobria a cabeça e, normalmente, escondia seus sorrisos...
─ Vão cum Deus!
O Simplício, por sua vez, preferiu que ambos fossem com o próprio cometa, afinal...
* * *
Por acaso, você aí leitor, à esta altura não estaria desconfiado pensando com seus botões que não era bem para observar o cometa que um forasteiro levou a roceira filha àquele mirante escuro e deserto em plena madrugada? Todos pensariam, com exceção do Simplício e esposa... Como se vê, esse caso é mais vizinho da ingenuidade e falta de malícia, que da crença no chamado "leite da bondade humana", mas...
Do
que eu posso garantir, é que eles viram o cometa sim, e o viram melhor do que
ninguém na solidão e silêncio daquelas sublimes alturas, inda mais com uns
traguinhos da nobre cachaça da fazenda Palmeiras estalando na língua...
* * *
─ Fiquei sabendo que o pessoal da Tipografia Tavares criou uma monte de souvenires para comemorar a vinda do cometa: cartões postais, posteres, folhinhas, adesivos e outras quinquilharias, mas eles estão receosos.
─ Receosos por quê?
─ A aparição pode ser um fiasco, e ele surgir como um cometinha qualquer. E isso vai ser um problemão?
─ E porquê “problemão”?
─ Oras, se os artigos ficarem encalhados, eles só vão poder vendê-los daqui a 76 anos!...
(Gargalhadas gerais)
Velhos cometas e chuvas de estrelas
As crianças ─ ah, as crianças!... ─ tal como o Pedrinho do "Viagem ao Céu" do Lobato, sonhando até em viajar de garupa na cauda do cometa!...
O cometa de 1882 |
─ Lembro, naquelas manhãs de setembro de 1882, que nós acordávamos cedo, antes do Sol nascer, é lá estava ele, como se um imenso farol luminoso saísse do horizonte! Lembro que este cometa surgiu três meses depois da morte de Garibaldi.
─ Que é Garibaldi, seu Fiore?
─ Falo do nosso famoso Giuseppi Garibaldi, aquele personagem histórico famoso que queria unificar a Itália!
─ A, não conheço não, seu Fiore!
─ Mas, voltando ao cometa, ele era tão grande e brilhante, que mesmo de dia ele podia ser visto! Depois que ele contornou o Sol, passamos a vê-lo ao cair da tarde até fevereiro do ano seguinte, quando ele foi desaparecendo aos poucos nas profundezas da noite. Nossa, até enjoamos de vê-lo! Meu Deus, como foram incríveis aquelas noites! E incrível também foram os crepúsculos do ano seguinte, quando o vulcão Krakatoa explodiu, pois a grande quantidade de pó que ele jogou na atmosfera envolveu a Terra tornando os finais de tarde vermelhíssimos, como ninguém nunca vira!
A ruptura do Biela em 1843 |
A chuva de estrelas de 17 de novembro de 1872. |
O Halley em 10-5-1910, com 50º de cauda |
─ Eu
ainda num tive a oportunidade de vê um cometa, Seu Fiore. Como qu’ele é?
─ Shakespeare disse que o Halley parecia uma “trança de cristal”, mas o que nós vamos ver vai se parecer com um imenso facho luminoso de farol atravessando o céu.
─ Mas eu nunca vi um facho de farol! ─ reclamou o
pequeno David.
Os presentes riram-se a valer, mas é provável que aos leitores não se dê o mesmo...
* * *
Um grupo de brasileiros que passara na casa do italiano Juó (lembram dele?!), que não quis ir ver o cometa, foi advertido por ele que já era alta madrugada:
─ Endão, meus senhores, me desculbem, mas não boderei ir. Já bassa das tuas horas, e italiano não bode deixar a mulher alda noide sozinha. Me berdoem.
Já fora da colônia, os brasileiros não perdoaram o betacismo do Juó, e, arremedando o coitado, riam-se a valer...
─ Berdão, senhores... italiano não bode... é alda noide...
Faz. Morro Alto, por Adrian Henri Van Emelen, 1928 |
E, realmente, nesta noite, tal como aconteceu com o citado cometa rasante de 1861, o magnífico Tebbutt, a cauda do Halley envolveu a Terra. As raras pessoas que perceberam aquela estranha luminescência no céu (desnecessário dizer que era a dupla acima...) disseram que era uma fosforescência amarelada, enquanto que outros juraram ser avermelhada.
Neste momento, o Planeta atravessava uma região próxima à extremidade da cauda, isto sem que a maioria dos humanos percebesse, pois poucos, principalmente o homem comum, detectariam sua presença e tomariam por cauda aquelas auroras e faíscas iniciais, bem como o aspecto diáfano e algo leitoso que invadiu o céu. Era como se uma pulverização finíssima de matéria estelar pairasse sobre o Planeta, e ─ incrível! ─ era possível divisar o débil brilho das estrelas por entre este véu, enquanto que, sabidamente, um nevoeiro propriamente dito as ocultaria por completo. Causava perplexidade saber que, na atmosfera terrestre, a cauda era deveras translúcida, mas vista à distância no céu como nos dias anteriores, era como que um longo véu esbranquiçado e brilhante que fazia o céu noturno brilhar como nos momentos dos primeiros clarões da anteaurora.
─ Viu o que eu vi, Emília?
─ Vim sim! Que estranho! O que será aquilo?!
─ Sei lá...olha, um meteoro!
─ Eu vi! Mas será que também eram meteoros aquelas faíscas?
─ Vai saber...
─ Olha, outro!
─ Como é rápido!
─ E ele até deixou um rastro de poeira brilhante!
─ Que lindo!
O que ambos viram eram os meteoros da Eta Aquaridae, a famosa chuva de estrelas originada de detritos do próprio cometa Halley em suas sucessivas passagens pelo Sistema Solar há séculos. Por outro lado, certamente, aqueles estranhos clarões e faíscas sinalizavam que, àquela altura ─ isto, sem que alguém soubesse ─, sua imensa cauda estava a envolver discretamente nosso planeta. A constelação de Aquário, ponto de onde os meteoros irradiavam, pairava logo acima do horizonte Leste, e nos entornos de suas imediações, quanto mais distantes dela, maiores eram os traços deixados pelos meteoros que surgiam.
Chuva de Meteoros Eta Aquáridas |
O Halley visto em Fortaleza, Ceará, em 17-5-1910 |
─ Seu Benedito ─
instou o administrador ─, o senhor toca instrumento de corda, não
toca?
─ Nossa, sinhô administradô, eu num toco instrumento nenhum, quanto mais de corda!
─ Como não toca?! Quem puxa a corda do sino
da fazenda não é o senhor?!
O preto velho gargalhou alto...
Antes que o Benedito desse início aos dobres, o badalar de um sino solitário soou ao longe, e, no profundo silêncio da noite, seus badalos ecoaram nos contrafortes das matas e morros distantes, no que foi acompanhado de todos os outros sinos de outras fazendas. Nunca, em seus dias de ex-escravo, o negro tocou o sino assim, badalando fortemente, como jamais o velho bronze havia soado.
Nas proximidades, ouviu-se também uma longa saraivada de fortes
estouros de roqueiras que explodiam iluminando o céu. A manifestação foi como a
de um galo que principiasse a cantar sozinho, e, após ser ouvido por outros das
redondezas, todos respondessem participando da cantoria. Souberam depois que o
responsável pelos disparos dos morteiros foi o Seu Nero, que, ao sul da
fazenda, preferiu ver o cometa sozinho munido de um binóculo e de umas boas
garrafas de champanhe. À esta altura, vale lembrar que o Nero era portador de certas
peculiaridades que iludiam, e não levava a vida se não às custas delas...
* * *
O dono da fazenda, que resolveu ignorar o cometa, ao ouvir a exagerada salva de roqueiras e os badalos nervosos do sino, manifestação que parecia não ter fim, indignou-se:
─ Acho que quem vai incendiar tudo mesmo
não é o cometa, mas esse bendito do primo Nero com esses seus malditos rojões;
e, pelo jeito, vai incendiar a própria Santa Escolástica!
A esposa, igualmente ignorando o cometa, arrematou:
─ Ele sempre teve esse seu lado de
piromaníaco! Lembra que todas as festas de São João aqui na fazenda era ele
quem montava aquelas enormes fogueira e fabricava os fogos?
─ Realmente, querida. Tinha me esquecido
disso.
─ E ouça como o Benedito está tocando este sino?! Parece a azáfama daqueles bombeiros de São Paulo quando anunciam fogo!
A esposa fez uma sugestão:
─ Vamos abrir um champanhe, querido? É o que todos os ricaços estão fazendo a esta hora por todo o Planeta em homenagem ao cometa!
─ Uma ótima ideia!
Ela foi à adega e...
─ Nossa, Luiz, não encontrei nenhum litro de Veuve Cliquot! O nicho onde elas ficavam está vazio!
─ Como?!
Ontem mesmo eu vi meia dúzia de litros na adega!
─ Mas
como foram sumir?!
─ Então alguém as bebeu, mas quem?!
─ Deixa para lá! Depois compramos mais!
Traga cervejas, então? Traz essa aqui de Araras, que é muito boa.
─ Qual? A Ulson, a cervejinha preta?
─ Essa mesmo!
─ É prá já!
─ Ufa, até que enfim esse sino parou!
─ Mas, ouça: os da igreja Matriz estão tocando ainda!
─ Já imaginou se o padre Amorim ouve isso?
─ Quem, aquele vigário que dizem que excomungou o cometa?
─ Esse mesmo.
─ Mas que problema haveria em ele ouvir os sinos?
─ Oras, querida, foi ele quem batizou, três anos atrás, o sino gigante da Matriz, aquele que o barão de Tatuí doou.
─ Ouça, ouça: o sujeito que está badalando estes sinos está dando um verdadeiro show, hein!
─ É o tal do sacristão Ítalo Viterbo! Consideram ele o Villa-Lobos dos sinos!
─ Uau!
─ Mas, mudando de assunto, Luiz, eu fico feliz de você ter desistido de ir observar o cometa...
─ Oras, mas porquê você diz isso, querida?
─ Por que assim você não foge aos seus deveres
conjugais...
A senzala da Santa Escolástica |
Muitos daqueles que ouviram as predições do Constante Maurício se perdiam em súplicas implorando misericórdia, e a maioria dos gritos vinham dos negros. Boa parte estava prostrada no solo, uns ajoelhados, uns gemendo, outros soltando gritos de horror, e boa parte deles com as mãos levantadas para os céus implorando a Deus que os salvasse do fim do mundo. Houve quem dissesse que a atmosfera estava se alterando e que o ar estava ficando asfixiante... A maioria bebia nesta hora, mas não era por motivos de comemoração, e sim, para se entorpecer caso o pior acontecesse. Muitas bebidas rústicas eram servidas, como jacuba, capilé, anisete e jeropiga entre os italianos, já que vinho era algo meio raro naquela época, mas enquanto todos degustavam suas bebidas, os negros tragavam aluá ou cachaça como nunca.
─ Me dê essa garrafa, qu’eu quero virá tudo!
─ Mais esta é cachaça do bairro Aurora, aquela quiocê num gosta!
─ Nesta hora eu bebo até chumbo derretido!
Halley e o planeta Vênus visto por entre a mata |
Mal chegaram, o Michelangelo ficou ali em frente ao rio, ensimesmado, com o olhar parado fito num ponto indeterminado feito um martim-pescador olhando as águas. Súbito, despertou:
─ Afinal, Pinocchio: nós viemos aqui para quê?
─ Se esqueceu que temos de estudar e planejar o que faremos a hora em que o cometa aparecer?
─ Oh, sim!... e vai demorar muito para começar a aparecer?
Movendo a mão para cima e soltando estalos com o polegar e o dedo médio para realçar a sensação de tempo a decorrer, respondeu o Pinocchio:
─ Ih, tem mais uma meia hora ainda, Michelangelo.
E o fanfarrão do Nero, solitário em meio ao descampado, se deliciava com sua champanhe francesa enquanto observava o esplendor do deslumbrante astro. Ao notar algo como um gases sutis sendo ejetados no final da cauda, ele fez um brinde ao cometa e disse:
─ Halleyluia! Que lindo! A cauda desse
cometa parece jorros de champanhe!
O Constante, sabendo que ele estava ali naquele local privilegiado, para lá se dirigiu.
─ Você por aqui, Constante!
─ Conheço bem as vantagens desse local, Nero, e esperava ficar
sozinho aqui, longe daquela lamúria toda da negraiada e das carolas.
─ Fique tranquilo, que eu não vou causar incômodo algum...
E, dividindo a champanhe com o amigo, ambos puseram a observar o cometa e trocar impressões.
─ Vendo algo tão imponente como esse cometa, eu penso na existência de... ─ o Constante interrompeu:
─ Deus!
─ Não: Flammarion...
─ Engraçadinho!... Nossa, mas que cheiro horroroso veio com
a brisa! Será o gás do cometa?
─ Não: fui eu que fiz necessidades ali atrás da bananeira...
─ Agora é que o Mundo acaba mesmo!
─ Engraçadinho!...
O Constante deu um grito:
─ O fim está próximo!
─ Halleyluia!
Halley em 15-5-1910 |
Quando
os primeiros clarões da aurora se esboçaram sutilmente na linha do horizonte,
já podia se ouvir ao longe a ouverture selvagem dos gritos agudos das saracuras
três-potes e o gargalhar áspero das seriemas, que reberveravam claramente na
fina e límpida atmosfera do amanhecer. O cometa não sumiu com a claridade
solar, mas ficou ainda visível em meio ao amarelado da barra do dia, embora
brilhando tenuamente. Desnecessário dizer que, com exceção do Nero e do
Constante, os outros observadores não notaram isto.
Amanhecer na Santa Escolástica |
Ainda, obviamente, não existia a imensa chaminé da Usina Palmeiras construída pelo David, de modo que as primeiras claridades solares iluminaram antes de tudo ambos os morros das fazendas Morro Alto e Belmonte, mirantes onde, certamente, muitos fazendeiros passaram a noite observando o cometa. Não posso me esquecer de outro morro local ─ de menor altura, porém ─, o de uma fazenda onde meus avós maternos viveram poucas décadas depois: o agradável mirante da fazenda Santa Clementina, ali, um pouco acima da Usina Palmeiras. Certamente, dali se tinha uma ótima vista, mas não posso garantir que nele estiveram fazendeiros da região, mas no da Morro Alto, ah, eu tenho toda a certeza de que um casal de jovens ciosos foram os primeiros a se beneficiarem dos primeiros clarões da aurora...
Quando todos retornavam para suas casas, felizes e aliviados do “fim do mundo” que não veio, barulhentos bandos sucessivos de papagaios, araras e maritacas passavam voando alto como que festejando um renascimento, e muitos vinham pousar nos coqueiros da fazenda para a primeira refeição matinal. Das matas abaixo da fazenda, beirando o imenso tanque que lá existe, vinham cantorias intensas de, como diria Guimarães Rosa, "pássaros de ouvir sem ver", pássaros hoje raros na região, como surucuás, udus, jacutingas, tovacas e jaós, que davam suas boas-vindas ao belíssimo dia que se anunciava. Porém, desde a alvorada, muitos estranharam algo:
─ Rebelatto, reparou uma coisa?!O David, em 1957, três anos antes de falecer |
Na manhã seguinte, o pessoal se reuniu embaixo da figueira, e alguém lembrou de trazer um bule de café. Ainda com uns restolhos de esperança, o pessoal até esperou a visita dos almofadinhas, mas nada.
─ Então o Mundo não acabou?
─ Pois é...
─ Bom, já que os dois almofadinhas não apareceram, que tal cada um dizer o que viu?
─ Ótima ideia!
─ Vamos começar por você, Constante.
─ Não sei se alguém viu isso, mas teve uma hora que a cabeça do cometa parecia estar se desfazendo em pequenas estrelinhas luminosas, que em seguida também se desfizeram numa brilhante chuva de faíscas, que sumiram depois de alguns minutos! Foi lindo aquilo!
─ Eu vi!
─ Eu também!
O Constante tinha mais para dizer:
─ Cerca de uma hora depois, eu reparei no céu umas faixas bem longas que, certamente, era a própria cauda do cometa.
Constante continuou:
A coma do Halley |
─ Ali, por volta das três e meia da madrugada, já dava para notar que aquilo era a cauda mesmo, que devia se estender por quase metade do céu. Pouco antes de começarem a aparecer as barras do dia, ela era claramente visível, formando aquele imenso farol luminoso pelo céu, que, eu calculo, devia atingir quase 120 graus, ou seja, mais de 2/3 do céu tomado pelo cometa! Olha, no final da cauda, em sua parte mais larga, acho que caberiam nela, brincando, brincando, umas 15 luas cheias alinhadas lado a lado. Com sua passagem, até o brilho de Vênus empalideceu.
─ Muito interessante! ─ opinou o Nero, e fez seu pequeno depoimento:
─ ...foi nesses momentos que o cometa mostrava o seu poder de fogo, e foi possível vê-lo em seu máximo esplendor, fulgurante como nunca e com a cauda que crescia em tamanho e luminosidade a olhos vistos. Sua cabeça era algo como uma estrela enorme e fulgurante, com um núcleo muito grande e luminoso, de onde partia a cauda, que num certo momento foi se tornando alaranjada, se abrindo como um facho comprido de luz a partir do horizonte leste.
* * *
O Del Ciello, como que poetizando, deu seu parecer:
Houve verdadeiros poetas, como o Nava, um sujeito muito culto:
Halley 13-5-1910, em Grand Harbour, Malta, por Giuseppe Cali |
Uma senhora, a dona Almerinda, trouxe novidades, pois foi a única que se referira aos meteoritos que surgiam no céu à direita próximo ao final da cauda:
─ Era como uma
vassoura de fogo que descia do céu e varria a Terra de luz, e, em torno daquela
bola de fogo lá no alto, caíam os astros.
O Halley visto na cidade de Ipu, no Ceará, em maio de 1910 |
Me desculpem, amigos, interromper a fala do distinto visitante, mas eu lhes garanto que um astro assim, único como o Halley nesta noite, só se descreve por meios de superlativos ─ e, na verdade, foi o que o Nero fez ─, e o fez com tal maestria e eloquência que eu, cioso, resolvi guardar só para mim o seu depoimento, mas eu prometo que um dia aind eu lhes conto...
A praça Barão de Araras, cenário onde o cometa podia ser visto abertamente 16 anos depois |
* * *
Para que eu pudesse pontuar o conto com um final feliz, bem a contento dos leitores (mais das leitoras) ─ ou pelo menos a contento de um certo casal ─, torciam eles, quiçá, com as mesmas esperanças da esperta Marietta ─ que cria piamente que sua filha e o almofadinha terminariam juntos, unidos feito carrapicho amor-agarradinho ─, mas, hão de ver que a felicidade foi sacrificada pela patifaria...
Pois
bem. Passados nove meses, nascia mais uma criança na Santa Escolástica, e com
ela ─ ironia do destino ─, parecia morrer de vez a ingenuidade de um certo e
notório caipira, que ironizou:
─ O Seu Nero falô que os cometa fecunda a Terra, mais parece que o cometa fecundô memo foi a nossa fia!... E agora, óia só: mais uma boca prá alimentá na famía! Ô, armofadinha mardelazento!...
E a Marietta, que deixara saudades nas alegres badernas noturnas de outrora como muié-dama no casario do largo da Capela de Santa Cruz, exultou:
─ Como é lindo e inteligente nosso netinho, meu Pinóquinho do coração!
E o Simplício bateu na mesma tecla do velho estribilho:
─ Puxou para mim na inteligência e para você na formosura, Marietta, e não retruca senão eu te lanho no reio!...
* * *
Parado na porteira da fazenda e olhando para o estradão, o tal de Juó, aquele do "Sunetto...", desabafou indignado:
─ Ladró
di galligna, inveiz di griá vacca pra vendê garne di vacca na Inglaterra!
* Este
capítulo faz parte da série de 11 livros memoriais sobre a Usina Palmeiras: "APÓLOGO 11 - OS DEVANEIOS DE UM MOLEQUE NA ERA DA
CONTRACULTURA.- Volume 0 — Childwood
— janeiro de 1961 a fevereiro de 1967” . Os livros estão
em processo de confecção sem prazo para lançamento.