sábado, 10 de abril de 2021

HALLEYLUIA!

Um velhíssimo visitante - Boa-Nova - Um polêmico padre - Efeitos colaterais do cometa - Dois almofadinhas - Um autêntico caipira - Velhos cometas e chuvas de estrelas - E a cauda envolveu o Planeta! - Fenômenos estranhos - A aparição! - Halleyluia! - Ao amanhecer - Estranho sumiço... -  O Fiore e seu primogênito - Prestação de contas - Caixeiros viajantes...

“Ocorreu, em 1910, um fato digno de registro. Todos sabem por
 experiência própria, que há fatos os quais ficam indelevelmente 
marcados na memória de uma pessoa, mesmo que tenha 
acontecido nos primeiros anos de sua vida, quando o ente mal 
tem consciência de si mesmo. (...)  Uma mãe italiana chamou seu
 filhinho, brasileirinho de 4 anos, nascido na rua, ordenando-lhe:
– Vai ‘figliolino’, vai depressa na rua e olha que coisa bonita no céu. 
(...) Tratava-se do majestoso cometa Halley...”
(O Bairro do Bom Retiro – História dos 
Bairros de São Paulo. Hilário Dertônio, 1971)

"Dia desses eu me mando
Vou na cauda do cometa
Meu olhar é uma luneta
Virada pra Lua.”
(Virada pra Lua. Simone Guimarães)

“A subversão da vista.
A primeira ideia do cosmo.”
(A Idade do Serrote
Murilo Mendes, 1968)


Um velhíssimo visitante

Muitos e muitos escritores, inúmeros mesmo, dedicaram-lhe páginas brilhantes, tal como as que louvam (ou lamentam) os grandes eventos pelos quais passa a humanidade de tempos em tempos. E esta, dividida em duas partes, amou e temeu o evento, mas por alguns dias apenas, que o motivo deste acontecimento era passageiro, e logo seguiu seu destino, que não era de sua intenção de deter-se aqui, muito embora alguns dos seus companheiros se suicidem por aqui após longa jornada. Como um andarilho, à escoteira, veio de longe, chegou de modo sutil e foi passando, passando, fez o contorno para retornar ─ onde se excitou deveras ─, momento em que se exibiu gloriosamente aos olhos de todos, e, no looping costumeiro, partiu indiferente retornando para os gélidos confins do Universo de onde viera obscuramente. Diria que o visitante não veio por vontade própria, mas atraído por misteriosos magnetismos que, no entanto, ao mesmo tempo que o atraiam inicialmente, o repeliam depois... Oh, sim, caro leitores, a esta altura, deveis ter notado que me refiro a um dos chamados “vagabundos do espaço”....

O Halley em 240 a.C. Arte: Murilo Martins e Rogério Borges, 1985
Muitos e muitos escritores, inúmeros mesmo, dedicaram-lhe páginas brilhantes, tal como as que louvam (ou lamentam) os grandes eventos pelos quais passa a humanidade de tempos em tempos. E esta, dividida em duas partes, amou e temeu o evento, mas por alguns dias apenas, que o motivo deste acontecimento era passageiro, e logo seguiu seu destino, que não era de sua intenção de deter-se aqui, muito embora alguns dos seus companheiros se suicidem por aqui após longa jornada. Como um andarilho, à escoteira, veio de longe, chegou de modo sutil e foi passando, passando, fez o contorno para retornar ─ onde se excitou deveras ─, momento em que se exibiu gloriosamente aos olhos de todos, e, no looping costumeiro, partiu indiferente retornando para os gélidos confins de onde viera obscuramente. Diria que o tal não veio por vontade própria, mas atraído por misteriosos magnetismos que, no entanto, ao mesmo tempo que o atraiam inicialmente, o repeliam depois... Oh, sim, caro leitores, a esta altura, deveis ter notado que me refiro a um dos chamados “vagabundos do espaço”...

Do que posso adiantar inicialmente, diria que neste memorável período ocorreria um dos mais incríveis eventos astronômicos jamais vistos no Planeta. Nunca, num único mês, tantos olhos se voltaram para o céu noturno para vislumbrar algo tão magnífico — sim, amigos, trato do majestoso cometa Halley que, novamente, vinha nos dar o ar de sua graça, inda que seus “ares” não fossem bem-vindos por muitos...

Segundo alguns astrônomos dessa época, essa nova visita do cometa estava marcada há mais de 70 anos, e já constava dos livros didáticos de nossos avós, lembrando que o Halley já vinha atemorizando a humanidade desde o ano 240 a.C. 

Quando o mês das noivas teve início, e o cometa se tornou deveras comentado, o medo e a excitação das pessoas em geral atingiu o seu clímax. Só se falava nisto, nos botequins, nos jogos, nas farmácias, nas caçadas, nas pescarias, durante o café, a janta e o almoço, no trabalho, nas igrejas!... O que a maioria receava era que o cometa fosse mesmo se chocar contra a Terra. Outros falaram que ele não colidiria, mas sua cauda roçaria o planeta envenenando-o com seus miasmas. Um sabichão disse que para matar uma pessoa instantaneamente bastava uma gotícula de cianogênio na língua ─ justamente o gás que era encontrado na cauda do cometa!... A paranoia era tanta que se um sujeito de mente sugestionável saísse ao relento e mirasse o firmamento, lá estaria a própria espada do Juízo Final pairando acima de sua cabeça!...

Fioravante "Fiore" Dalto
─ É, Fiore, acho que desta noite não passo!

─ Tem medo que o cometa dê cabo de sua vida, Balestro?

─ Para ser sincero, tenho sim!

─ Então faça o seguinte: antes de morrer, transfira para mim suas contas bancárias e seus bens, pois eu estou disposto a correr todos os riscos...

─ !!!
 
A Boa-Nova
 
Dias antes, no auge da aparição, o Fiore lembrou a esposa do fato. Ela estranhou:
 
─ Nossa, mas então quer dizer que o cometa voltou?!
 
─ Como assim: “o cometa voltou”, Emília?
 
Emília Pierina Samazzo Dalto
─ Eu me lembro, meio vagamente, que no finalzinho de janeiro passado eu vi ele numa madrugada antes do Sol nascer, mas acabei até esquecendo que vi, e até de falar para você. O estranho é que mais gente aqui no Lote viu, mas ninguém comentou nada, mas teve gente que se assustou e voltou correndo pra dentro de casa. Na verdade, eu não tenho muita certeza de que era mesmo um cometa, pois não olhei com muita atenção. Acho que o que eu vi era a Estrela d’Alva com uma nuvem comprida junto dela... sei lá... não me lembro muito bem não...
 
─ Ou era fumaça da chaminé do locomóvel da dona Quininha da Morro Alto?! ─  ironizou o Fiore, que cismou depois:
 
─ Mas, falando sério, Emília, essa tua visão é coisa muito estranha, pois se fosse um cometa mesmo, porquê só agora todo mundo resolveu falar dele?! 
 
─ Devia ser outro cometa.
 
─ Outro?! É só do Halley que estão falando!
 
─ Ué!...

Campos da fazenda Morro Alto, vistos a partir de colônia, lugar por onde desfilava o locomóvel da fazenda, ótimos locais para se ver o cometa
 
*   *   *

Na noite anterior ao apogeu da aparição, os colonos da Santa Escolástica decidiram fazer uma romaria com a intenção de aplacar as iras do cometa. Normalmente, nestes tempos, à hora da Ave Maria todos se recolhiam, mas o caso era uma exceção. Convidaram gente de toda a região: das fazendas São Joaquim, Belmonte, Morro Alto, Santa Clementina, Montevidéu, bem como os escravos libertos da fazenda 
Palmeiras, do Soares do Amaral. Do Lote (futuro Verde), onde o Fiore então morava, vieram ele e família, também as famílias dos Corte, D’Alessandri, Pacagnella, Menegazzo, e também um almofadinha que atendia pelo estranho nome de Constante Maurício.

O palco das histórias, com a fazenda Santa Escolástica ao centro, em mapa de 1907: matas, cafezais e escuridão propícia à observação do cometa.

Um parente do fazendeiro da Santa Escolástica, em visita à fazenda, onde era frequentador assíduo há décadas, enquanto observava os preparos para a romaria, conversava com um ex-escravo por nome Benedito, um sujeito tagarela que falava por quantas juntas tinha. Como diria o Lima Barreto, “Ele falava com a sua voz mole de africano, sem ‘rr’ fortes, com lentidão e convicção:

─ ...intão qué dizê qui o sinhô vortô pra nos visitá, Seu Nero? Qui bom sinhô, qui bom! 
 

─ Eu vim aqui para a fazenda especialmente para ver o cometa, pois lá em São Paulo há casas demais e há luzes elétricas de rua por todos os lados. Aquela claridade toda atrapalha a visão do cometa, Seu Benedito. Mas, por outro lado, li tudo sobre ele, tudo que me caiu nas mãos. Estou preparadíssimo para vê-lo!


O negro não lhe poupou de uma crítica:

 

─ Me descurpa dizê isso, mais o sinhô precisava vir de tão longe só pra vê o cometa? E Sum Paulo, pelo que eu ouvi o patrão dizê, ainda tem muito lugar sem luiz elétrica.


Naquela época, obviamente, não havia problemas com poluição luminosa, mas hoje o Nero teria razão, lembrando que dois italianos, Pierantonio Cinzano e Fabio Falchi, em seu First World Atlas of the Artificial Night Sky Brightness (2001) afirmaram que dois terços da população mundial não têm mais a experiência de uma noite escura!...


O Halley, visto clara e abertamente a partir de uma grande cidade, Nova Iorque, na Quinta Avenida da Broadway, em 20 de maio de 1910

 

E o negro, entusiasmado com o assunto, não parava de falar... 


─ O ano passado, eu vi um quadro lá na fazenda do Rodorpho Coimbra, dotô aí da fazenda Montevidéu, um quadro d’um pintor que lá apareceu, um óme de nome isquisito, um tar de Maria-Gabrié, e... ─ o Nero complementou: 

─ Marie-Gabriel Biessy? 

─ Isso! Esse memo! Pois então, sinhô Nero, eu tinha ido fazê uma entrega lá na Montevidéu, e vi o quadro exposto na sala, que era uma pintura feita de Sum Paulo à noite, co'as luiz elétrica acesa, e pur ele eu achei qu'elas são muinto fraquinha, pareceno luiz de lampião, tudo meio escuro. É pur isso qui eu imagino que elas num vão ofuscá o cometa não.

─ Mas se fosse uma iluminação igual à que teve na Exposição Nacional do Rio de Janeiro, há dois anos atrás, mal ia se poder ver o cometa. 

─ Mais purquê o senhor diz isso, seu Nero?

─ O poeta Olavo Bilac escreveu na época que, lá na Exposição, as lâmpadas elétricas eram estendidas em varais por todos os lados, formando grandes massas de luz, e o efeito era tão forte que doía nos olhos!

À direita o Dr. Rodolfo Coimbra, em foto de 1909
Quanto ao Biessy, ele teve sua passagem por Araras registrada no jornal Tribuna do Povo em 11 de julho de 1908. Quanto ao citado quadro, o “Vista de São Paulo à Noite” ─ uma tomada feita a partir de um viaduto (do Chá?) ─, depois integrou uma exposição no Cercle Français, uma galeria na rua São Bento, na qual foi arrematado em 1909 pelo então Secretário de Justiça e Segurança Pública de São Paulo, o senhor Washington Luiz. No mesmo dia, o citado Rodolpho Coimbra comprou o quadro “Porte D’Ostendes à Bruges”. Triste constatar que nada sabe do paradeiro desses belos quadros, bem como de dois outros de que falarei adiante, quadros que deveriam ser localizados, pois, ao meu ver, têm uma grande importância na história pictórica paulista. 
Vale lembrar que o Nero não só visitou esta exposição, como também conhecia a fazenda Montevidéu.

Neste momento, o Fioravante, que vinha de sua casa, se aproximou da dupla ouviu o Nero dizer:

─ No cume do morro da Montevidéu tem uma vista muito bonita. Lá de cima, se nos voltarmos para o lado Nordeste, poderemos ver claramente ao longe a Serra da Mantiqueira, que faz a divisa entre dois estados: São Paulo e Minas Gerais.

Domenico, o pai do Fioravante, acrescentou:

─ Já estive lá e vi a serra ao longe ─ muito bonita! Lá em minha terra, em Treviso, a gente podia ver os Alpes, que são a divisa entre dois países: a Itália e a Suíça, mas são muito diferentes da Mantiqueira, mas penso que, mesmo assim, se o Segantini visse a Mantiqueira, faria uma bela pintura.

"Nativa", quadro de Antonio Ferrigno
─ Quem é Segantini, Seu Fiore?

─ É Giovani Segantini, um famoso pintor lá de minha terra, considerado o pintor das montanhas.

─ Ultimamente, tem grandes pintores vindo buscar motivos na região. Mais de 10 anos atrás, esteve aí na fazenda Santa Gertrudes o Antonio Ferrigno, que pintou um quadro tendo como motivo uma negra chamada Nativa. Deu muito comentário isto, pois ninguém entendia que, com tanta gente importante para retratar, ele fosse fazer justamente o quadro de uma escrava!

O ex-escravo interviu:

─ Eu conheci a Nativa numa festa de 13 de maio! É uma escrava muito bonita!

Como vimos, o Nero nada disse ao escravo de sua vista à exposição do Biessy, e, voltando-se novamente para ele, perguntou:

─ Mas, Seu Benedito, não vão fazer o “ad effugiendun cometa” lá na capela de Santa Cruz na cidade?
 
─ “Adi”, o quê, sinhô? Num entendi?
 
─ A-di-e-ffu-gien-dun-co-me-ta, aquela missa de encomendação para afugentar o cometa? 

A capela de Santa Cruz
─ Nossa, sinhô, eu nunca ouvi ouvi falá nisso, mais eu num sei se vão não, pois a capelinha de Santas Cruiz vai entrá em reforma logo, logo. Que eu saiba, gerarmente eles faiz o “Te deum”. A sumana passada a pretaiada si reuniu lá na capela prá fazê os batuque prá comemorá o 13 de maio, e é tudo o que eu sei.
 
─ Nossa, 13 de maio é o dia do meu aniversário! ─ exultou o David que, no momento, se aproximava de ambos.
 
─ E qual é o teu nome, menino?
 
David, e este aí o meu pai Fiore.
 
─ Olha só! Mas, bonito nome o teu!
 
─ Obrigado!
 
─ Sabia que o Rei Davi viu esse mesmo cometa que vamos ver hoje há mais de 2 mil anos atrás?
 
─ O Rei Davi, aquele da Bíblia?
 
─ Exatamente!
 
─ Nossa!
 
─ E qual o teu nome, senhor?
 
─ Pode me chamar de Nero.

O Fiore observou:
 
─ Bom, Seu Nero, uma coisa é ver o cometa como ele viu. Outra, é se tornar rei como ele se tornou. Não é?
 
─ Há, há, há! Bem colocado, Seu Fiore! E, quem sabe, seu filho não se torne rei um dia!
 
─ Deus te ouça, mas Nero não é o nome daquele sujeito que incendiou Roma?
 
─ Exatamente...
 
O administrador da fazenda, que havia chegado há pouco, resolveu intervir:
 
─ Mas hoje é a vez do cometa bancar o incendiário, né, Seu Nero, mas incendiando o Planeta...
 
(Gargalhadas gerais)
 
─ Seu Nero, será que o imperador Nero, assim como o rei Davi, também viu o cometa Halley?
 
─ Viu sim, sobre Jerusalém, dois anos antes de falecer, isto, no tempo em que o Evangelho de Mateus estava sendo escrito. Embora Nero não gostasse de cometas ─ e ele até mandou matar Sêneca por isto ─, quando ele sucedeu Cláudio no reinado de Roma, um cometa brilhante surgiu.
 
─ Nossa!
 
O locomóvel
─ Mas, meu pequeno David, séculos se passaram, e as pessoas ainda continuam encarando os cometas como astros agourentos, mensageiros de desgraças! Mal aparece um, e lá vem calamidade! Logo, logo vão dizer que foi o Halley que está causando o declínio da borracha na Amazônia, que foi ele que fez aqueles 100 italianos se rebelarem na construção da ferrovia do Acre, fugirem do acampamento e se perderem na selva para nunca mais serem encontrados!
 
─ Tens razão. ─ observou o administrador.
 
─ Se o Halley devesse prenunciar alguma coisa, que fossem coisas boas então, como o telefone, o automóvel, o aeroplano, o fonógrafo, o raio-x, a máquina de escrever e o cinema!
 
─ Bem observado, Seu Nero, bem observado! ─ elogiou o administrador.
 
As pessoas ouviam atentamente as diversas explanações do visitante, mas muitas vezes não entendiam muito bem o que ele estava dizendo.

David Daltro, na casa dos 30 anos
Me permitam, caros amigos, abrir um parênteses aqui, que pretendo revelar uma coincidência ─ nada demais, só uma curiosidade. O já citado Murilo Mendes ─ aquele que após ver o cometa Halley se transformou num poeta ─, nasceu no mesmo dia que o menino David, mas, ao passo que o primeiro se transformou num amante das coisas celestiais que versejava, o segundo, com as chaminés que construiria no futuro, parecia querer unir, em elos indissolúveis, céus e terras... Até então, nada havia de mais alto na cidade, de lavra humana, que as chaminés que construira, nem mesmo a longa chaminé do locomóvel da Quininha... Exageros a parte, nisto, certamente, ele, com seus imensos poemas de pedra ─ chaminés visualmente tão alongadas quanto os grandes cometas ─, estava menos para o Murilo que para o poeta Alberto de Oliveira, que vercejou:

“Ser chaminé! Existir num píncaro azulado,
Vendo as nuvens mais perto e as estrelas em bando...”
 
Enfim, amigos, saibam que o David Daltro se tornou rei sim, mas o “rei das chaminés”, aquele que construiu as maiores chaminés das três usinas açucareiras de Araras em seus primórdios, fato de que nos deus ciência o escritor Antonio Innocente, assunto, aliás, que tratarei em breve em outro capítulo. 
 
"Comet Rag" - Al Peterson (Dorian Henry, 1910, piano rendition)


Um polêmico padre 

Marie-Gabriel Biessy
O Nero reencetou a conversa com o Benedito, e histórias interessantes foram ouvidas. 

─ Seu Nero, me lembro que naquele dia na Montevidéu, eu tive a oportunidade de vê um outro quadro muinto bunito do Maria-Gabrié, que ele havia acabado de pintá, que trazia uma coisa curiosa. 

─ Que coisa? 

─ Num sei se o sinhô sabe, mais os italiano aprendero a fazê feijoada co’a pretaiada ─ e eles apreceia muito ela ─, e o quadro mostrava uma famía de colono italiano preprano uma feijoada no meio da mata da fazenda ─ esse tar de piquenique qu'eles tanto gosta. Uma belezura de quadro!  

─ Olha que interessante, Seu Benedito! Mas, fiquei sabendo que esse pintor é visitante contumaz da fazenda.  

─ “Contu” o que, Seu Nero? 

─ Con-tu-maz, Seu Bendito, contumaz, aquele que visita com frequência um lugar. 

─ Nossa, Seu Nero, tem palavra prá tudo nesse mundo! 

Sobre esta primorosa e desaparecida pintura, a Revista Ilustrada de junho de 1911, num ótimo documentário sobre Biessy, escreveu: 

“E que amizade, que calorosa gratidão guardou para todos os seus hospitaleiros modelos! Ao ouvi-lo contar, especialmente os dias deliciosos, as noites admiráveis, que passou na fazenda Montevidéo, onde foi durante algumas semanas amimado — é esse o termo que ele emprega — não se pode deixar de compartilhar também um pouco de seus sentimentos em relação à hospitalidade brasileira e de invejar esse viajante entusiasta. 

Foi aí que ele pintou a ‘Feijoada’, essa clareira aberta na sombra verde de uma floresta virgem, entre árvores gigantescas, que as lianas envolvem em seus 'múltiplos tentáculos, e onde surgem, como cintilações de cores vivas, entre a folhagem, flores de púrpura e de neve, formando um cenário shakespeariano, cheio de misteriosa penumbra, onde os lenhadores, curvados para a marmita, que ferve, parecem preparar algum filtro de feitiçaria.” 

A  fazenda Montevidéu, em foto da década de 1970
O Nero fez uma observação pertinente: 

─ Mas será que ele vai fazer alguma pintura do cometa Halley, Seu Benedito? 

─ Num sei dizê, sinhô, mais é uma boa pregunta!

─ Se não fez, deveria, já que ele, pelo que eu constatei lá na exposição em São Paulo, gosta muito de fazer pinturas noturnas com luzes. 

─ Ah, então o sinhô já visitô uma exposição dele?! 

O homem esboçou um sorriso amarelo e, se recordando de um assunto pertinente, acrescentou: 

─ Eu também visitei a Montevidéu muitos anos atrás, e tive a oportunidade de ver lá um belíssimo quadro feito por um artista aqui de Piracicaba, o Almeida Júnior, pintor que gostava muito de pintar quadros com temática caipira, e... 

─ “Temá” o que, Seu Nero? 

─ Te-má-ti-ca, Seu Benedito, temática, que vem de tema, de assunto. 

─ Humm... 

─ Pois bem. Como eu ia dizendo, o quadro que eu vi fora pintado no início da estrada que sai da cidade e vem para cá, alí onde fica a ponte Funda, sobre o Ribeirão das Araras, e... 

─ Sei, sei, sinhô. 

─ E, então, a pintura retrata esse lugar, bem onde fica o casarão do Antônio Gomes, e... 

E o negro interrompeu de novo... 

─ Conheçu, sinhô, cunheço, mas esse casarão, hoje, é do Lázaro Quintiliano, um lavradô! 

─ Não sabia disso, Seu Benedito, mas voltemos ao assunto. Então, o quadro, belíssimo, mostrava esse início de estrada, mas o tal renque de bambuais ainda não existia, mas só a estrada do Morro dos Hugas e os pastos à esquerda, com as pessoas, num dia ensolarado, indo pela “Estrada da Baronesa de Arary”. 

─ Nossa, sinhô, que pena que eu num vi esse quadro! 

"A estrada da fazenda da baronesa de Araray". Almeida Júnior. 1899.
─ E o Almeida Júnior teve um final triste, pois foi morto por uma apunhalada de um primo, em 1899, porque saía às escondidas com a esposa dele. Aliás, coincidentemente, esse quadro foi um dos últimos que ele pintou, pois morreu neste mesmo ano.

─ Hummm, sinhô, esse negócio de traí a parcêra sempre acaba em tragédia memo! Cá entre nóis, aqui na colônia tem um rocêro que tem uma muié bunita prá daná, muié que tudo mundo é loco pur ela, e tem um italiano qu’eu conheço e fiquei sabeno que morre pur causa da dita, e vive mandando versinho pr’ela. Hummm, se o rocêro soubé, Deus do céu, vai saí morte aqui na Escolástica, mas morte por tiro de pica-pau, pois o óme é caçadô! 

─ Sim, Seu Benedito, esse negócio de infidelidade conjugal acaba sempre numa divina encrenca, e, versinhos carcamanos, não sei não... 

─ Mais, sinhô Nero, mudano de assunto, eu mi lembrei agora: fiquei sabeno que a dona Mariquinha Olegário e seu esposo Bino Alves de Camargo é que vão bancá a reforma da capela, e até vão fazê uma torre de sino lá. 

─ Que ótimo! Ela estava precisando mesmo, porque aquele barreado das paredes está numa situação lamentável, a ponto de elas ruírem!

─ Se me permite, sinhô, mudano de assunto, fiquei sabeno ─ e tá todo mundo falano ─, que o padre Amorim Correia rogou uma praga contra o cometa! Óia só! 

─ Sim, eu ouvi falar. Que padre excêntrico, este, hein!
 

A atitude do tal padre Amorim, que era considerado um pároco polêmico ─ e segundo as más línguas, “ditador, violento e arbitrário” ─, deu o maior ibope na cidade. Acontece que mal anunciaram no ano anterior a visita do cometa, e ele, na melhor tradição secular do Papa Calixto III, inventou de, num sermão dominical na igreja Matriz ─ e com todos os maiorais presentes ─, excomungar o inocente e indiferente astro, que só estava de passagem por este sistema!...
 
─ Até parece que um cometa imponente e belo como vai ser esse está se lixando para as pragas de um mero mortal que é esse padreco de meia pataca!
 
─ O sinhô tem toda razão. 

Cônego Manoel Carlos
de Amorim Correia
De seu sacerdócio anterior na cidade do Bananal, Amorim deixou sua marca registrada, a de que possuía “uma verve polêmica, dificultando a compatibilização do sacerdócio com sua personalidade intolerante, vingativa e prepotente”. Tanto o é que ele não durou muito em Araras, e logo no ano seguinte foi transferido para Itapira, onde “fundou a célebre Igreja Brasileira que tanto mal fez à religião católica, não só pelo mau exemplo de apostasia como e, principalmente, pela falsa doutrinação”. Uma reportagem publicada na extinta revista Realidade, de fevereiro de 1969, cita que a primeira vez que se ouviu falar “Igreja Católica Apostólica Brasileira" foi no ano de 1913, e o feito se devia a um padre português: nada mais, nada menos que Manuel Carlos do Amorim Correia, que rompia com o Vaticano e fundava uma igreja independente de Roma. Mas com sua morte 6 meses depois, em circunstâncias estranhas ─ fora envenenado ─, o movimento por ele fundado em Itapira perdeu também suas forças desaparecendo sem deixar vestígios. No livro “O Papa Verde-Amarelo” (1999), Jacomo Mandatto comenta sobre sua passagem por aqui:

“Em Araras, Amorim, percebeu a falta que fazia à população um hospital e, assim pensando, resolveu fundar uma Santa Casa de Misericórdia. Contudo, um grupo de ararenses já havia tomado a si a incumbência de prover a cidade de tal melhoramento. Será que a cidade foi informada dos acontecimentos em Bananal? Desgostoso e contrariado nos seus intentos, Amorim, solicitou sua transferência para outra paróquia e, o bispo de Campinas, Dom Nery, encaminha-o para Itapira, sucedendo ao padre Bento Dias Leme.”
 
─ Mas as más línguas dizem que essa história de que ele foi transferido para Itapira está mal contada…
 
─ Mais pruquê o sinhô diz isso?
 
─ Não foi ele que quis acabar com as casas das “muié-dama” ali do lado da capela de Santa Cruz, e os filhos dos fazendeiros resolveram expulsar ele da cidade por isto?
 
─ Nossa! Num sei dizê nada sobre isso não, meu sinhô. 

Nisto, tal como no famoso conto do escritor Érico Veríssimo, em que o general Chicuta Campo Largo “correu a relho da cidade um juiz que teve o caradurismo de assumir ares de integridade de opor resistência a uma ordem sua”, ele comentou:

─ Esse padre, se eu não me engano, foi escorraçado da cidade, sendo levado até a estação debaixo de chicotadas, e dali despacharam ele para nunca mais voltar. Na partida, falaram que ele rogou uma praga contra Araras, dizendo que ela não se desenvolveria por 20 anos!
 
─ Vige Nossa, sinhô! E a praga vingô?  

 ─ Até agora não aconteceu nada, a não ser que a praga seja a vinda do cometa!... Mas acho que esse padre e o padre Amorim não eram o mesmo, não. Me lembro que até que o Amorim tentou proteger os italianos, que eram tratados como escravos por certos fazendeiros ruins aqui da cidade ─ os tais “coronéis" da Guarda Nacional ─, e, principalmente, lutou para proteger as mocinhas italianas que eram alvo da sanha dos concupiscentes filhos dos fazendeiros. 

─ “Concu...” o que, sinhô? 

- Con-cu-pis-cen-tes, que significa devasso, libertino. 

─ Hummm... Mais, intão, meu sinhô, essa atitude significa que o padre tinha bom coração? 

─ Sim, sim, seu Benedito, inclusive foi ele quem conseguiu o maior sino da Matriz, que tem mais de 500 quilos. O então sino principal havia rachado, e ele, em contatos com o barão de Tatuí, obteve um novo por doação deste.

Em 13 de janeiro de 1961, no Tribuna do Povo, o colunista Maria Lúcia comentava esse belo feito do padre: 

“TIVERAM excepcional brilhantismo, as festividades em louvor da Senhora do Patrocínio, excelsa padroeira de nossa cidade, naquele longínquo 8 de Dezembro de 1907, promovidas pelos festeiros: Francisco José da Fonseca (o Chico Pinto) e D. Maria Soares de Carvalho, juntamente com uma comissão de doze abastados fazendeiros do município. 

Era Vigário da Paróquia de Araras, o Padre Manoel Carlos de Amorim Corrêa. Neste dia 8, depois da missa das oito horas, o respectivo Vigário acompanhado das irmandades da Matriz, e do povo em procissão, dirigiram-se à Estação da Companhia Paulista, afim de receberem o novo e grande sino, doado à nossa Igreja, pelo Sr. Barão de Tatuí, e que devia ser transladado processionalmenle da Estação ao Largo da Matriz, com grande pompa. O sino fabricado na Holanda, pesava 560 quilos, foi puxado por uma carreta própria, com seis bois. 

Bem junto do sineiro, esse precioso e tão útil presente recebeu a bênção do Padre Amorim, tendo o ato sido paraninfado pelo doador Sr. Barão de Tatuí e a festeira D. Maria Soares de Carvalho. (...)”



Efeitos colaterais do cometa

Mas acontece que na Santa Escolástica os comentários cometários estavam em alta, com todos a especular o espetacular astro, e tudo rendendo muitas histórias, e mais, atitudes hilariantes (e olha que a cauda do cometa mal havia roçado o Planeta…). 

A fazenda Santa Escolástica

Teve um preto velho que procurou o administrador e o aconselhou a desmontar o pára-raio da fazenda…
 
  ... mas tirar o pára-raio para quê, santo cristo?
 
  É pr'ele num atraí o cometa, sinhô!
 
  !!! 

*   *   *
 
O Fiore conversava com uma menininha da fazenda:
 
─ ...vai aparecer um cometa?! O quê é isso, Seu Fiore: ”cometa’?

─ É a estrela de rabo, Antonella.
 
─ Ah, sim, minha mãe falou dele ontem, mas nunca vi um!
 
─ Pois então nós vamos vê-lo depois de amanhã de madrugada, antes do Sol nascer.
 
─ Nossa, Seu Fiore! Estou louca pra ver isso! Mas, me diga uma coisa, Seu Fiore: os cometas tem fogo no rabo?
 
E o Fiore, rindo:
 
─ Por que você diz isso, Antonella?
 
─ Oras, Seu Fiore, ele não vai por fogo no mundo quando nos roçar com sua cauda?
 
*   *   *
Duas italianinhas conversavam.
 
─ ...então, Emmanuelle,  quer dizer que você não conhecia um cometa e nunca tinha visto um?!
 
─ Cometa, para mim, Giovanna, é caixeiro-viajante, que traz armarinhos, roupas, bijuterias, perfumes e espelhos, e não gases tóxicos, incendiários e asfixiantes, e, pior, alardeando o fim do mundo!
 
*   *   *
 
Neste dia, no apogeu da aparição, os ex-escravos que ficaram na fazenda após a abolição se recusaram a trabalhar. O feitor foi interrogá-los. Disseram:
 
─ Num leve à mal, não, Seu Feitô, mas prá que trabaiá se hoje à noite o cometa vai acabá cum tudo?
 
─ !!!
 
*   *   *
 
Uma italianinha adolescente resolveu enterrar num lugar escondido suas cartas de amor. Sua irmã quis saber o motivo:
 
─ Se eu morrer, Giulia, e alguém encontrar essas cartas, vai descobrir meus segredos! Entende?
 
─ Paola, se o cometa matar alguém, vai matar todo mundo, e não só você. Portanto, é besteira isso que você vai fazer. E fique tranquila que se a cauda incendiar o Mundo, suas cartas vão queimar junto...
 
*   *   *
 
Um colono português, ao cair da noite, revelou seu inteligente plano:
 
─ Vou fazer meu testamento agora mesmo e depois vou dormir. Se o cometa matar todo mundo, pelo menos eu morro dormindo, sem sofrer, e, de quebra, acordo no céu…
 
Um amigo ironizou:
 
─ Mas se o cometa matar todo mundo, seu burro, que serventia vai ter o testamento?! E quem garante que, logo você, Meneghetti, irá para o céu?!...
 
 
Dois almofadinhas
 
No dia 17, ao final do expediente na fazenda, aportou na fazenda um auto-caminhão Studebaker, dotado de ampla carroceria repleta de grandes gaiolas. Dele desceram dois jovens, moços desconhecidos, mas muito bem vestidos e educados, e se dizendo cientistas. O administrador os recebeu.
 
─ Prazer, meu nome é Pinocchio!
 
─ O meu é Michelangelo!
 
─ Muito prazer, e o meu é Pietro! O que desejam?
 
Ambos disseram que estavam pesquisando o cometa e queriam reunir a opinião e as impressões de todo mundo da fazenda sobre o que cada um iria ver na madrugada daquele grande dia. Ao final, prometeram uma recompensa para cada depoimento. Nisto, muita gente que nem estava ligando para a aparição resolveu superar os medos e acordar de madrugada para vê-lo.
 
O administrador deu permissão, e eles conseguiram, ao final do expediente, reunir boa parte dos colonos e escravos libertos e fizeram a proposta à todos.
 
O negro Benedito, após uma breve reunião à parte com o administrador e os colonos, incumbido de intermediar o assunto, procurou a dupla de almofadinhas:
 
─ Seus sinhozinhos, o pessoar resorveu colaborá co’cêis. Nós vamu ajudá sim, que isto não nos custa nada.
 
─ Custa sim, Seu Benedito, que é a recompensa que receberão pelo que cada um de vocês vai dizer a nós depois.
 
─ Intão fica assim, amanhã cedo oceis vorta e o pessoar fala tudo o que viro.
 
*   *   *
 
O Halley entre as constelações, em 17-5-1910,
Bahia, desenho d
mineralogista Alpheu Dias Gonçalves
Neste mesmo final da tarde do dia 17 de maio, chegando na Santa Escolástica vindo do Lote, o jovem Constante Maurício se aproximou de um grupo de pessoas que conversavam, e ouviu algo curioso de dois italianos:
 
─ Disseram que o cometa tem aquele tal de cianureto na cauda, veneno que pode deixar a gente cego!
 
─ Mas eu ouvi dizer que a cauda tem é um gás inflamável que vai fazer o Mundo pegar fogo!
 
─ Entre ficar cego e morrer queimado, eu prefiro ficar cego…
 
(gargalhadas gerais)
 
Interessado na conversa, o Constante, sujeito muito ledor e bem informado ─ mas, por outro lado, pedante, e, pior, com um indisfarçável desejo de infundir pavor naquela gente ingênua ─, resolveu explicar a eles sobre os componentes da cauda do cometa, dizendo que, além do citado cianureto, também havia o cianogênio ─ um gás que tóxico que poderia causar uma morte coletiva rapidamente. Disse ainda de outros gazes que poderiam estar na cauda, como o hidrogênio, o carbono e o nitrogênio. E disse que se, por exemplo, o hidrogênio se combinasse com o oxigênio do ar, poderia ocorrer uma grande explosão. Já o carbono, se combinasse com o oxigênio da atmosfera formando monóxido de carbono, todos morreriam asfixiados.
 
Todos estavam assustados, embora não entendessem muito bem o que ele estava explanando. Ao final, ele complementou:
 
─ Para finalizar, amigos, se o nitrogênio combinar com o ar que respiramos, ele formará o óxido nítrico ─ que é conhecido como o gás hilariante ─, e isto vai provocar um verdadeiro ataque coletivo de gargalhadas em todo mundo!
 
─ Então, quer dizer que vamos morrer de rir? Meno male, Seu Constante, meno male!... ─ ironizou um italiano.

 *   *   * 

Asher B. Durand, Kindred Spirits, 1849
À tarde, os dois almofadinhas 
saíram pela fazenda para estudarem um lugar onde pudessem disparar os fogos à noite sem que os colonos os incomodassem. O Michelangelo, passando por uma touceira de cana, aproveitou para chupar uma. Depois, ao passar pelo estábulo, se sentiu tentado a roubar um pouco de leite de uma vaca que ali estava. 

─ Não faça isso, seu tonto! ─ advertiu o Pinocchio.

─ Fazer o quê? 

─ Chupar cana e depois tomar leite! Não sabia que causa diabetes?! 

─ Pinocchio, deixa de ser mentiroso, rapaz! Onde já se viu dizer uma lorota dessas! Eu já ouvi falar que não presta chupar manga e tomar leite depois, porque causa congestão, o que também não acredito, mas manga com leite causar diabetes, essa nunca ouvi falar!...

Vale lembrar que os fogos que ambos iam soltar, não era para festejar o cometa. Os leitores descobrirão o motivo em momento oportuno...



Um autêntico caipira 

Naquela época, granjeava a Santa Escolástica de possuir uma outra santa, digo, uma mocinha por nome Juliana ─ diria, a musa daquelas paragens ─, a qual se regozijava de arrastar atrás de sua formosura uma plêiade de ciosos pretendentes, mocinha cuja beleza inquietava corações em toda parte onde pusesse seus pequeninos e graciosos pés. Por uma particularidade inocultável, tão inocultável que o pessoal da colônia logo notou, a encantadora tinha uma queda por passeios vespertinos, de modo que era passatempo da roceira sair aos finais de tardes em caminhadas pela alameda de abacateiros que ali existia. E foi num desses seus passeios que um certo almofadinha (me refiro ao Pinocchio) a viu. O fato se deu tal como no conto “O Jaó” do Arthur Azevedo, onde ele diz: “ele encontrou Mimi numa volta de estrada, e ficou impressionadíssimo por aquela surpreendente formosura do campo”. Agora, se me permitem, deixemos que o Valdomiro Silveira fale por mim:

"Era mesmo uma fermosura, de cabelo comprido solto nas costas, saia de seda cor de cana rangendo baixinho, sapatos de cordovão com fivelas de prata, anel de brilhante no dedo e uns olhos!"

Daí que a formosa, ao vê-lo (antes não o visse...), deixou escapar um sorrisinho convidativo ─ um desses gracejos carismáticos que nas conquistas amorosas atiçam deveras o desejo e não há homem do gênero invulnerável a eles. Linda e tentadora que era, no mesmo instante o Pinocchio a abordou, e, lançando mão das lábias em que era perito, deu início à sua investida:

─ Boa tarde, moça! É daqui mesmo, da fazenda?  

─ Sim, nasci aqui. 

─ Prazer, meu nome é Pinocchio. Qual tua graça?

─ O prazer é todo meu, e o meu nome é Juliana! 

E, numa atitude de reverência, recuando dois passos esticando uma das pernas com a ponta do pé voltada para cima, fechou os olhos esboçando um largo sorriso com os lábio unidos, e abrindo-os, elogiou:

─ Nome lindíssimo: Ju-li-a-na! Por sinal, o meu nome predileto! 

─ Obrigado! E você, é daqui de Araras mesmo?  

─ Não. Sou de São Paulo. 

O papo correu solto por longos momentos, e a uma certa altura, e ele contou à roceira o motivo de sua estada ali. 

─ ...e então, também vais ver o cometa hoje, Juliana? 

─ Estou louca para vê-lo, mas não sei se meus pais vão me levar. Eles são muito medrosos! Andei lendo muito sobre o cometa, de uns jornais que a dona da fazenda me deu! Vai ser lindo! 

─ Que bom, gostas de ler! 

─ Muito! Mas, me diga uma coisa: eu nunca vi um, mas é bonito esse cometa? 

─ Tão lindo quanto esses longos cabelos ruivos que descem pelo teu corpo! 

A mocinha corou-se... 

Repararam, amigos? Lá em cima, enquanto o Halley arrastava sua imensa cauda, cá embaixo, o Pinocchio arrastava suas asas...

O Halley em 1910

─ Queres ir comigo ver o cometa? Eu te levo ao mirante da fazenda vizinha, a Morro Alto, e de lá o cometa poderá ser visto no melhor ponto da cidade, pois é o mais alto! 

─ Eu gostaria, mas você acha que o bendito do Simplício vai permitir? 

─ Quem é esse Simplício? 

─ É o meu pai. Será que ele vai me deixar sair à noite, em plena madrugada, e com um desconhecido? Acho impossível, Pinochio!

─ E se eu for falar com ele? 

─ Pode ir, mas eu duvido que ele vai deixar. 

─ E onde eu posso encontrá-lo? 

─ Ele está lá em casa agora; vamos lá, mas... 

─ Antes de mais nada, Juliana, ele é bravo? 

─ O meu pai bravo?! Ih, coitado do meu pai!... 

─ Caminho livre, então? 

A roceira revelou um veio humorístico: 

─ Homem pacato está ali: meu pai é incapaz de matar uma muriçoca!... Se alguém precisar dele para empurrar minhoca na descida, ele não serve!... 

─ Há, há, há! Mas, por que dizes isso, Juliana? 

─ Ele não gosta muito de trabalhar, e, por isso mesmo, não vê a hora que eu me case e alivie as despesas da família. E mais, tem uma queda danada por cachaça!...

Quase não escondendo um malicioso risinho de mofa, no que por pouco não enclavinhou uma mão por cima da outra, o malandro exultou: 

─ Não me diga, Juliana!...

O palmeiral de Jerivás da Morro Alto em 1902.

Ela mudou de assunto e soltou uma frase inesperada: 

─ C'è un grande e bellissimo palmeto di Jerivás nella fattoria del Morro Alto, ma preferirei che fosse una piantagione di banane bionde proprio come te e tua madre, ma una mia piantagione...

─ O quê você disse? ─ perguntou o Pinocchio. 

─ Aqui na fazenda tem um italiano meio maluco ─ um tal de Juó ─ que vive repetindo esta frase toda vez que me vê, e repete tanto, que eu até a decorei... 

─ E o que a frase dizia? 

─ Há um grande e belíssimo palmeiral de Jerivás na fazenda Morro Alto, mas eu preferia que fosse uma plantação de bananas loirinhas assim como você e tua mãe, mas uma plantação minha...

─ Lá nas margens do rio Pinheiro em São Paulo está cheio dessas palmeiras, e eles chamam o lugar de Jeribatiba. 

─ Outra das maluquices dele é sair por aí gritando “Viva o Pedro Banana!” Aqui ninguém sabe quem é esse sujeito. 

─ Pedro Banana é o D. Pedro II...

─ Por falar nisso, ele sempre me diz que não gosta de palmeiras, mas sim de bananeiras, mas reconhecia que a única palmeira que admirava era a palmeira-imperial que o Dom Pedro plantara na fazenda Montevidéu quando visitou Araras.


O morro da fazenda Morro Alto

 *   *   * 

Simplício era casado com Marietta, mulher mais nova que ele e dotada de uma beleza estonteante, beleza esta que o punha inquieto, levando-o às raias do ciúme, à ponto de, às vezes, surrá-la quando percebia que ela se envaidecia com os olhares cupidos dos jovens da colônia. Tão provocante era a mulher que o tal do Juó ─ sujeito que vendia bananas na cidade ─, apaixonado que vivia, dedicou a sua musa uma poesia e se atreveu a enviá-la secretamente ─ uns riscados malucos a que batizou "Sunetto Futuriste (pra Marietta)" ─, cujo teor ela não entendeu patavina... Ei-lo:

"Tegno una brutta paxó,
P'rus suos gabello gôr di banana,
I p'ros suos zoglios uguali dos lampió
La da igregia di Santanna.

Ê mesimo una perdiçó,
Ista bunita intaliana,
Che faiz alembrá os gagnó
Da guerre tripolitana.

Tê uns lindo pesigno
Uguali cos passarigno,
Chi stó avuáno nu matto;

I inzima da gara della
Té una pinta amarella,
Uguali d'un carrapatto.”

Como se vê, o Juó foi impiedoso no desfecho... Por tais coisas, afirmar que a Marietta era um poço de castidade e de lealdade matrimonial, seria negar a veracidade que comungo com meus leitores, como se verá.

O Simplício, quando ela o conheceu, possuía uma fazendola e era senhor de algumas centenas de contos de réis, bens herdados do pai, mas perdera tudo após o casamento devido ao desamor pelo trabalho e a notória compulsão por caçadas e... por cachaça... Ainda assim, não creiam, amigos, que o nosso humilde caipira, por este seu currículo desabonador, fosse um sujeito caborteiro, mas tenham a certeza que ele era mais feliz que filho de padre... Simplício a amava, mas havia um porém, diria, uma nuvenzinha negra: o passado de Marietta... Felizmente, a italianada da colônia nada sabia deste lamentável outrora da companheira. Mas, amigos, vale dizer que nada mais sei da vida pregressa da bela Marietta, nem isto importa à narrativa, porém, é patente que a danada se regenerou. Seu único defeito, segundo o marido, era fazer café fraco, e tão fraco que ele mal conseguia sair do bule... Convém lembrar que o Simplício também era portador de outro defeito: na hora do repouso, quando o infeliz desfiava o rabecão, digo, quando roncava alto feito um cachaço ─ ronco de abalar as estruturas, de prateleiras e cristaleiras tremerem sensivelmente noite afora...

Desnecessário dizer que a filha puxou à mãe, e tão-somente à ela se devia a sua formosura. Assim posto, ninguém sabia como o feioso do Simplício conseguiu conquistar a Marietta, mas os leitores confirmarão mais adiante o porquê desse curioso fenômeno... Para usar uma expressão do citado Arthur Azevedo, o Simplício era um “desfavorecido da natureza”, tipo resultante da união desastrosa de certas partes do corpo vitais nas conquistas. Diziam as más línguas da colônia que o fato se devia por ela, tal e qual o marido, também ser deficiente no quesito inteligência, o que não era verdade, pois como vimos, na época do casório o Simplício possuía polpudos bens, portanto...

─ Mas como é que pode uma mulher bonita dessa casada com um capiau feioso desses?! Olha as orelhas do homem: com um par de orelhas desse dá para abanar café sem peneira!... 

─ Há, há, há!... E quando ele sorri, então! Você reparou no tipo de sorriso que ele tem? 

─ Que sorriso? 

─ O "sorriso 1001”: um dente incisivo para lá, outro para cá!... 

─ Há, há, há!... 

─ Aquele italiano, o Salvatore, chama ele de topo gigio.

─ E o quê quer dizer isso? 

─ Parece que é um rato orelhudo encontrado lá na Itália. 

─ Procede... 

Famosa ficou entre o pessoal da colônia uma conversa que ambos tiveram após se casarem ─ e não se sabe como esta conversa vazou e, inclusive, foi bater lá nos costados da Mantiqueira... Mas, rezava a lenda que ele, certa vez, dizendo a mulher sobre a qualidade dos filhos que teriam, afirmou que seriam frutos de sua inteligência somada à formosura dela, no que ela, querendo fazer um gracejo, disse que poderia ocorrer o contrário: os filhos nascerem com a inteligência dela somada à falta de formosura dele... O que eu sei dizer é que esta foi a primeira de uma das muitas surras que a atrevida Marietta levou do marido...

*   *   *

Ao chegar o almofadinha, lá estava o barba-rala ─ um autêntico caipira que não faria feio no "Urupês" do Lobato... Agachado à moda caipira ─ que cadeira de caipira é calcanhar ─, ao pé do cercado de bambus lá estava ele a pitar um palheiro ordinário, fumo ─ como diria o nosso bom Nelson de Farias ─, do tipo “bazé”, fumo fumacento e fedido prá danar... Com a aproximação da filha e seu pretendente, ele acertou com a unha preta do polegar a brasa do cigarrão, deu uma profunda tragada e, após, baforando forte, espanejou a mão para se livrar da fumaça e, então, se adiantou no cumprimento:  

 ─ Taaarde, Seo moço! 

─ Boa tarde! Meu nome é Pinocchio, e qual sua graça, amigo? 

─ Simplício, às suas orde! Mais, inda qu’eu mal lhe pergunte, donde conhece minha fia, Seo Pinocchio? 

─ Conheci hoje mesmo, e vim te pedir uma permissão. 

─ Permissão! Que permissão, rapai?! 

Uma pausa providencial aqui, amigos. Para usar pensamento do citado mestre Arthur Azevedo, diria que, sobre o pai de Juliana, seu "único defeito era ser fraco de inteligência, defeito que todos e perdoavam por não ser culpa dele." Já para a filha, para usar uma expressão, agora do bom Afrânio Peixoto, diria que, como as graciosas sertanejinhas de seus romances ─ aquelas que enlouqueciam os jovens visitantes da cidade ─ granjeava ela um “único pecado”: o “de ser bonita”... 

A princípio, o almofadinha se enrolou ao fazer o pedido (afinal, convenhamos, naqueles tempos um pedido desses era uma verdadeira afronta): 

─ Bem... é que... então... 

─ Desembucha logo, Seo Pinocchio! Num se avexe não! 

Sua velha cara-de-pau entrou em ação, na base do “ou vai ou racha”: 

─ Bem, Seu Simplício, é que hoje de madrugada irei ver o cometa, e queria pedir tua permissão para levar tua filha comigo, já que tua filha disse que você e sua esposa não irão. 

O caricaturável Simplício...
Apesar de o Simplício ser deveras cioso da esposa, estranhamente, com a filha não se dava o mesmo, e o motivo, já o vimos, o de ela ser uma despesa para a pobre família. Assim, a resposta não implicou em sérias ponderações (nem seria possível...), de modo que ela não tardou. De cócoras, a cabeça enterrada nos ombros, o caipira se limitou a fazer com o punho e o polegar um sinal de positivo bem de frente a própria carantonha, isto, ao mesmo tempo que esboçava um largo sorriso apalermado, exibindo o tal "sorriso 1001". Ele foi curto e... afável (grosso não): 
 

─ Ôôô, meu fiiio, eu aprovo sim! Pode levá a minha fia sem pobrema! Eu confio no sinhor! 

O almofadinha quis gargalhar com a facilidade na resposta positiva, mas limitou-se a um sorriso afável... À esse "aprovo sim!”, foi impossível não notar que o moço teve um indisfarçável estremecimento de satisfação, mas se conteve: 

─ Que ótimo, Seu Simplício, que ótimo! Mas, fiquemos combinados assim: lá por volta das 9 da noite eu venho buscá-la. 

 Surpreendentemente, o caipira falou: 

─ Nossa, Seo Pinocchio , inda qu'eu mal lhe pregunte: num é muito cedo não prá vê o cometa não? 

Novamente ele quis gargalhar, mas se limitou a dizer, digo, mentir: 

─ Qual, Seu Simplício! Disseram que ele vai aparecer a noite toda depois das 10... 

Nisto, lançando mão de uma tática apelativa, ele emendou: 

─ Um momentinho, Seu Simplício, que eu vou buscar algo para o senhor. 

E partiu o almofadinha para o outro lado da fazenda, onde estava o caminhão. 

Nesse entremeio, entrando em casa afoito e arrastando sua embriaguez até a cozinha, o Simplício deixou-se cair exausto em uma cadeira, isto como se tivesse trabalhado o dia todo e não praticado halterocopismo, porém, teve forças para expectorar estas palavras:  

─ Muié, acho que arrumei um bom partido prá nossa fia!  

A esposa deixou escapar um comovente “oh!”... 

O Pinocchio voltou rápido e com um embrulho, que prontamente entregou ao caipira. 

─ Um presente para o senhor! 

O Simplício abriu o embrulho e reconheceu de pronto a garrafa: 

─ Nossa, uma cachaça do engenho aqui da fazenda Parmera, do João Soares do Amaral!

─ Exatamente: a melhor da cidade!

─ Sem duvida, Seo Pinocchio!

Marietta e Juliana

Bem dizia o Fiore que o Simplício era um tonel de cachaça ambulante: o presente foi o que bastou para cair nas graças do matuto... Nesta hora, repentinamente, surgiram à janela a sorridente Juliana e atrás dela sua mãe, toda envergonhada, porém, esboçando um sorrisinho indisfarçável apesar do toucado com que cobria a boca. A cena compunha um quadro belíssimo, ridente e sugestivo, que só mesmo o Bartolomé Esteban Murillo para fazer outro igual. Ah, a bela Juliana... com aquele seu sorriso e aqueles olhares graciosos que prometiam mais do que deviam!

Se despedindo com exageradas mesuras, o almofadinha partiu, e partiu deixando a inocente Juliana cheia de sonhos no aconchego de seu quarto...  

*   *   * 

Antes da hora aprazada, eis o moço de volta... E veio ansioso, com aquela cara em cuja boca se esboçava um sorriso triunfante, tipo “É hoje!”... E tão seguro e ambientado estava que até tomou a liberdade de dar três buzinadinhas esganiçadas com aquela cômica corneta do Studebaker... A família apareceu à frente da casa, e o que se via agora eram mais três sorrisos, tão triunfantes quanto apalermados... Que o trio ignorava ser o moço portador de um belo auto-caminhão, algo tão raro naquelas paragens... 

Atentem agora para a cena única: a do retorno do almofadinha e a inesperada recepção com que os pais da roçadeira lhe brindaram. Olha que dá até para pinçar uma passagem do nosso grande Amando Caiuby, de seu conto "Maneco Fera”, onde ele diz: “O carreiro e a mulher receberam-no com alegria." Isto foi um claro indício de que a esposa, igualmente ao marido ─ com quem compactuava nas “opiniães” ─, não fez qualquer objeção às intenções do moço, afinal... Assim, ao ver que sua filha ia sair de caminhão com um sujeito da cidade grande ─ um jovem bem aparentado, bem vestido e com um linguajar de pessoa culta ─, pensou que ter aquele rapaz por genro era o sonho dourado de toda mãe que se prezasse... E tanto que ela se adiantou na despedida, e, tão inocente quanto a filha, acenou com o toucado com que cobria a cabeça e, normalmente, escondia seus sorrisos...

─ Vão cum Deus! 

O Simplício, por sua vez, preferiu que ambos fossem com o próprio cometa, afinal... 

*   *   *

Por acaso, você aí leitor, à esta altura não estaria desconfiado pensando com seus botões que não era bem para observar o cometa que um forasteiro levou a roceira filha àquele mirante escuro e deserto em plena madrugada? Todos pensariam, com exceção do Simplício e esposa... Como se vê, esse caso é mais vizinho da ingenuidade e falta de malícia, que da crença no chamado "leite da bondade humana", mas... 

Do que eu posso garantir, é que eles viram o cometa sim, e o viram melhor do que ninguém na solidão e silêncio daquelas sublimes alturas, inda mais com uns traguinhos da nobre cachaça da fazenda Palmeiras estalando na língua...

*   *   * 

─ Fiquei sabendo que o pessoal da Tipografia Tavares criou uma monte de souvenires para comemorar a vinda do cometa: cartões postais, posteres, folhinhas, adesivos e outras quinquilharias, mas eles estão receosos. 

─ Receosos por quê? 

─ A aparição pode ser um fiasco, e ele surgir como um cometinha qualquer. E isso vai ser um problemão? 

─ E porquê “problemão”? 

─ Oras, se os artigos ficarem encalhados, eles só vão poder vendê-los daqui a 76 anos!... 

(Gargalhadas gerais)


Velhos cometas e chuvas de estrelas

Apesar das interpretações supersticiosas dos adultos, daquele catastrofismo todo, do temor das velhinhas carolas e suas intermináveis orações, as crianças se mantiveram alheias a tudo, às discussões e previsões pessimistas que os mais velhos faziam de hora em hora, às lamúrias do ex-escravos, e apenas queriam saber do incrível espetáculo que o cometa ia proporcionar, não vendo a hora de serem despertadas em meio à madrugada. Desnecessário dizer, mas as crianças estavam mais para o “corcel ionizado” do Carlos Drummond de Andrade que para a espada do juízo final dos supersticiosos.
 
─ Mãe, falta muito tempo prá madrugada?! ─ perguntou um italianinho impaciente.
 
─ Nem anoiteceu ainda, menino! Tenha paciência! 

As crianças ─ ah, as crianças!... ─ tal como o Pedrinho do "Viagem ao Céu" do Lobato, sonhando até em viajar de garupa na cauda do cometa!...
 
─ Mãe, quando o cometa vier eu posso montar nele?!
 
─ Se seu pai deixar, pode...
 
A criançada do Lote, curiosas sobre o fenômeno, enchiam o Fiore de perguntas.
 
─ Mas o cometa é bravo, seu Fiore?!
 
─ Não, não! Isso são essas pessoas supersticiosas que veem coisas ruins em tudo aquilo que observam no céu e não sabem do que se trata. Não vai acontecer nada não, eu te garanto!
 
─ E o quê eles pensam que vai acontecer?
 
Se antecipando ao Fiore, a pequena Olga, uma menininha esperta, de apenas 10 anos, filha de um colono norueguês, com os olhos arregalados, disse:
 
─ Minha vó disse que aquela caudona esticada dele vai varrer toda a Terra, e seus gases venenosos vão acabar com tudo, e a pele vai se soltar do corpo da gente! Mas meu pai mandou a gente se acalmar, pois se a gente for morrer, pelo menos, vamos morrer todos juntos!
 
─ Que nada, Olguinha! Fique tranquila, que nada disso vai acontecer?
 
─ E como você sabe que não vai acontecer nada, Seu Fiore?
 
─ Eu já vi outro cometa assim, quando morava lá na Itália, e nada aconteceu.
O cometa de 1882
Foi um mês depois que minha irmã Matilde nasceu ─ eu nunca me esqueço disto! Do nada, de repente, apareceu um grande cometa, e por muitas noites acordamos de madrugada para ver aquela coisa absurda de linda! Era incrível, brilhante, com uma cauda enorme! Foi em 1882. E eu tinha só 8 anos, mas me lembro muito bem.
 
Se me permitem agora interromper por um breve instante esta singela história e abrir um parênteses aqui, mas já abrindo, gostaria de esclarecer sobre uma hipótese envolvendo este cometa que meu trisavô observara: em seu  retorno anterior, em princípios do distante ano de 1106, ele era parte de um cometa que se dividiu em dois, sendo a outra metade o Ikeya-Seki, cometa belíssimo que o afortunado aqui iria ver em outubro de 1965, aliás, meu primeiro e melhor cometa, de modo que meu trisavô viu a primeira metade e eu a segunda 83 anos depois. Para poucos...
 
Prossigamos.
 
─ Será que o Halley vai ser bonito como este de 1882, Seu Fiore?
 
─ Não sei não... é difícil....
 
─ Vamos torcer para que seja!!

─ Lembro, naquelas manhãs de setembro de 1882, que nós acordávamos cedo, antes do Sol nascer, é lá estava ele, como se um imenso farol luminoso saísse do horizonte! Lembro que este cometa surgiu três meses depois da morte de Garibaldi. 

─ Que é Garibaldi, seu Fiore? 

─ Falo do nosso famoso Giuseppi Garibaldi, aquele personagem histórico famoso que queria unificar a Itália! 

─ A, não conheço não, seu Fiore! 

─ Mas, voltando ao cometa, ele era tão grande e brilhante, que mesmo de dia ele podia ser visto! Depois que ele contornou o Sol, passamos a vê-lo ao cair da tarde até fevereiro do ano seguinte, quando ele foi desaparecendo aos poucos nas profundezas da noite. Nossa, até enjoamos de vê-lo! Meu Deus, como foram incríveis aquelas noites! E incrível também foram os crepúsculos do ano seguinte, quando o vulcão Krakatoa explodiu, pois a grande quantidade de pó que ele jogou na atmosfera envolveu a Terra tornando os finais de tarde vermelhíssimos, como ninguém nunca vira!

O cometa Donati em 1858, por Detlev Van Ravenswaay

─ Te invejo, seu Fiore!
 
─ Inveja mesmo você sentiria de meus antepassados! Foi um conterrâneo meu, o italiano Giovanni Battista Donati quem descobriu em 1857 esse que é o cometa mais lindo que já apareceu, e que batizou com seu sobrenome. Meu pai Domenico e meu avô Abramo tiveram a suprema felicidade de vê-lo pairando majestoso no céu com suas três caudas brilhantes! Foi o cometa que tinha a mais bela forma de todos os que apareceram, pois ele parecia uma espada do tipo cimitarra! Os dois foram muito afortunados nesta época: em 1861 viram também o imenso Tebbutt, com sua cauda que se estendia por 3/4 do céu! Dois anos antes de eu nascer, segundo eles, apareceu outro grande cometa, o Coggia, com a cauda atingindo mais de 3/4 do céu.
 
A ruptura do Biela em 1843
─ Três quartos é quanto, Seu Fiore?
 
─ Se você dividir o céu em quatro partes, o cometa toma três partes dele.
 
─ Nossa, era muito grande!
 
─ Uns cinco anos depois, em 1872, eles também viram uma grande chuva de estrelas que começou desde o início da noite e foi até à 1 hora da manhã, quando caíram milhares e milhares de estrelas. 

─ O que é “chuva de estrelas”, Seu Fiore?

─ Chuva de estrelas é uma chuva de restos de cometas. Ela acontece quando a Terra passa por uma região onde um cometa deixou restos de si mesmo, restos que são poeira desprendida dele quando se aproximou do Sol.
 
─ Nossa! E que cometa foi esse que deu origem à esta chuva, Seu Fiore?
 
─ Um cometa de nome feio, o Biela.
 
─ Nossa, eu já ouvi este nome pela boca de um amigo lá da fazenda Morro Alto, que me disse que era uma peça tinha quebrado no locomóvel da dona Quininha, e ele ficou sem funcionar um tempão por falta dela ─ se recordou o administrador.
 
─ E o Biela se quebrou também, pois sua cabeça se partiu em duas partes, mas este cometa meu pai e meu avô não viram não. Mas, a chuva de estrelas todo mundo viu lá em Treviso, até mesmo o Papa IX! Todos saíram às ruas para ver e ficavam abestalhados, e aquela gritaria atraía todo mundo que deixava suas casas para ver o espetáculo! Era incrível porque choviam estrelas, mas elas não caíram no solo, e apagavam no céu após deixar um comprido traço luminoso!

A chuva de estrelas de 17 de novembro de 1872.

O Halley em 10-5-1910, com 50º de cauda
Um ex-escravo perguntou: 

─ Eu ainda num tive a oportunidade de vê um cometa, Seu Fiore. Como qu’ele é? 

─ Shakespeare disse que o Halley parecia uma “trança de cristal”, mas o que nós vamos ver  vai se parecer com um imenso facho luminoso de farol atravessando o céu. 

─ Mas eu nunca vi um facho de farol! ─ reclamou o pequeno David. 

 O administrador se lembrou de algo:
 
─ É algo inimaginável, David! Dia 13 passado eu vi ele de madrugada, enorme, quase tomando metade do céu. No final da cauda dele parece que havia pedaços dela se desafazendo como jatos d’água espirrando!
 
Não mentia, o administrador. Neste dia, foi feita uma belíssima foto, foto histórica, e, realmente, o Halley estava incrível. Nesta noite, como nunca, o cometa compunha um todo harmonioso com o firmamento. Num determinado ponto da cauda havia jatos de matéria que, como gêiseres de luz pulverizada, se dispersavam pelo espaço.
 
O pequeno David ironizou:

─ Se a cauda do Halley for maior que o bigode do Coronel Justiniano, então ela é grande mesmo!

Os presentes riram-se a valer, mas é provável que aos leitores não se dê o mesmo... 


*   *   *

Um grupo de brasileiros que passara na casa do italiano Juó (lembram dele?!), que não quis ir ver o cometa, foi advertido por ele que já era alta madrugada: 

─ Endão, meus senhores, me desculbem, mas não boderei ir. Já bassa das tuas horas, e italiano não bode deixar a mulher alda noide sozinha. Me berdoem.

Já fora da colônia, os brasileiros não perdoaram o betacismo do Juó, e, arremedando o coitado, riam-se a valer...

─ Berdão, senhores... italiano não bode... é alda noide...

Faz. Morro Alto, por Adrian Henri Van Emelen, 1928
No lado Oeste, para os lados da Morro Alto, a Lua em quarto-crescente podia ser vista se pondo pachorrenta e mais alaranjada que de costume, quase vermelha. Envolvendo os quadrantes do céu, era possível notar uma discreta e estranha faixa sinuosa e luminescente que se estendia do horizonte Nordeste até o ponto onde o Sol ia nascer, sendo que durante o dia, nuvens próximas ao Sol exibiam o fenômeno da iridescência. Durante a madrugada, faixas luminosas dominavam todo o firmamento e moviam-se quase imperceptíveis pela noite afora. Só os mais atentos notaram estas sutilezas  ─ como o tal de Nero e o Constante Maurício (lembram dele?!). Diga-se de passagem, estes dois eram kindreds spirits por excelência. O que significa isto, amigo? Fica para você descobrir...

E, realmente, nesta noite, tal como aconteceu com o citado cometa rasante de 1861, o magnífico Tebbutt, a cauda do Halley envolveu a Terra. As raras pessoas que perceberam aquela estranha luminescência no céu (desnecessário dizer que era a dupla acima...) disseram que era uma fosforescência amarelada, enquanto que outros juraram ser avermelhada.

Neste momento, o Planeta atravessava uma região próxima à extremidade da cauda, isto sem que a maioria dos humanos percebesse, pois poucos, principalmente o homem comum, detectariam sua presença e tomariam por cauda aquelas auroras e faíscas iniciais, bem como o aspecto diáfano e algo leitoso que invadiu o céu. Era como se uma pulverização finíssima de matéria estelar pairasse sobre o Planeta, e ─ incrível! ─ era possível divisar o débil brilho das estrelas por entre este véu, enquanto que, sabidamente, um nevoeiro propriamente dito as ocultaria por completo. Causava perplexidade saber que, na atmosfera terrestre, a cauda era deveras translúcida, mas vista à distância no céu como nos dias anteriores, era como que um longo véu esbranquiçado e brilhante que fazia o céu noturno brilhar como nos momentos dos primeiros clarões da anteaurora.  


Fenômenos estranhos 

Longos instantes de vigília, em meio ao cochichar constante das crianças, num dado instante, ao olhar o horizonte Sudoeste para os lados da fazenda Santa Cruz ─ onde a imensa cruz invertida da constelação de Cisne pairava ─, o Fiore notou discretos clarões que se repetiam, lembrando algo como pequenas e esmaecidas auroras boreais. Às vezes, estranhas faíscas surdas riscavam a linha do horizonte de fora a fora ─ luzes subliminares que pareciam dizer que o viajante intergaláctico estava na iminência de surgir acima do horizonte.  

Viu o que eu vi, Emília?

─ Vim sim! Que estranho! O que será aquilo?!

─ Sei lá...olha, um meteoro!

─ Eu vi! Mas será que também eram meteoros aquelas faíscas?

─ Vai saber...

─ Olha, outro!

─ Como é rápido!

─ E ele até deixou um rastro de poeira brilhante!

─ Que lindo!

O que ambos viram eram os meteoros da Eta Aquaridae, a famosa chuva de estrelas originada de detritos do próprio cometa Halley em suas sucessivas passagens pelo Sistema Solar há séculos. Por outro lado, certamente, aqueles estranhos clarões e faíscas sinalizavam que, àquela altura ─ isto, sem que alguém soubesse ─, sua imensa cauda estava a envolver discretamente nosso planeta. A constelação de Aquário, ponto de onde os meteoros irradiavam, pairava logo acima do horizonte Leste, e nos entornos de suas imediações, quanto mais distantes dela, maiores eram os traços deixados pelos meteoros que surgiam. 

Chuva de Meteoros Eta Aquáridas

Após o surgimento da coma acima do horizonte, houve quem presenciasse clarões pulsantes na cauda.

Pouco depois, aquele véu se se tornou mais nítido, no que lembrava o véu da própria Via Láctea, que, por sinal atravessava o céu do Nordeste para o Sudoeste passando pelo zênite, lugar onde o final da cauda se desfazia sutilmente. Na verdade, a Terra ainda estava a passear pelos bordos da cauda do cometa. Após o surgimento da coma acima do horizonte, houve quem presenciasse clarões pulsantes na cauda.

 
A aparição!

O Halley visto em Fortaleza, Ceará, em 17-5-1910
Enfim, lá estava o tal “corcel ionizado”, de que nos falava o poeta Carlos Drummond de Andrade: o facho luminoso do cometa se estendia por
 ─ pasmem! ─ 120º da esfera celeste, algo inimaginável! 

─ Seu Benedito ─ instou o administrador  ─, o senhor toca instrumento de corda, não toca? 

─ Nossa, sinhô administradô, eu num toco instrumento nenhum, quanto mais de corda!

─ Como não toca?! Quem puxa a corda do sino da fazenda não é o senhor?! 

O preto velho gargalhou alto... 

Antes que o Benedito desse início aos dobres, o badalar de um sino solitário soou ao longe, e, no profundo silêncio da noite, seus badalos ecoaram nos contrafortes das matas e morros distantes, no que foi acompanhado de todos os outros sinos de outras fazendas. Nunca, em seus dias de ex-escravo, o negro tocou o sino assim, badalando fortemente, como jamais o velho bronze havia soado. 

Nas proximidades, ouviu-se também uma longa saraivada de fortes estouros de roqueiras que explodiam iluminando o céu. A manifestação foi como a de um galo que principiasse a cantar sozinho, e, após ser ouvido por outros das redondezas, todos respondessem participando da cantoria. Souberam depois que o responsável pelos disparos dos morteiros foi o Seu Nero, que, ao sul da fazenda, preferiu ver o cometa sozinho munido de um binóculo e de umas boas garrafas de champanhe. À esta altura, vale lembrar que o Nero era portador de certas peculiaridades que iludiam, e não levava a vida se não às custas delas...

*   *   *

O dono da fazenda, que resolveu ignorar o cometa, ao ouvir a exagerada salva de roqueiras e os badalos nervosos do sino, manifestação que parecia não ter fim, indignou-se: 

─ Acho que quem vai incendiar tudo mesmo não é o cometa, mas esse bendito do primo Nero com esses seus malditos rojões; e, pelo jeito, vai incendiar a própria Santa Escolástica! 

A esposa, igualmente ignorando o cometa, arrematou: 

─ Ele sempre teve esse seu lado de piromaníaco! Lembra que todas as festas de São João aqui na fazenda era ele quem montava aquelas enormes fogueira e fabricava os fogos? 

─ Realmente, querida. Tinha me esquecido disso. 

─ E ouça como o Benedito está tocando este sino?! Parece a azáfama daqueles bombeiros de São Paulo quando anunciam fogo!

A esposa fez uma sugestão:

─ Vamos abrir um champanhe, querido? É o que todos os ricaços estão fazendo a esta hora por todo o Planeta em homenagem ao cometa!

─ Uma ótima ideia! 

Ela foi à adega e...

─ Nossa, Luiz, não encontrei nenhum litro de Veuve Cliquot! O nicho onde elas ficavam está vazio! 

─ Como?! Ontem mesmo eu vi meia dúzia de litros na adega! 

─ Mas como foram sumir?! 

─ Então alguém as bebeu, mas quem?! 

─ Deixa para lá! Depois compramos mais! Traga cervejas, então? Traz essa aqui de Araras, que é muito boa. 

─ Qual? A Ulson, a cervejinha preta? 

─ Essa mesmo! 

─ É prá já! 

─ Ufa, até que enfim esse sino parou! 

─ Mas, ouça: os da igreja Matriz estão tocando ainda!

─ Já imaginou se o padre Amorim ouve isso?

─ Quem, aquele vigário que dizem que excomungou o cometa?

─ Esse mesmo.

─ Mas que problema haveria em ele ouvir os sinos?

─ Oras, querida, foi ele quem batizou, três anos atrás, o sino gigante da Matriz, aquele que o barão de Tatuí doou.

─ Ouça, ouça: o sujeito que está badalando estes sinos está dando um verdadeiro show, hein!

─ É o tal do sacristão Ítalo Viterbo! Consideram ele o Villa-Lobos dos sinos!

─ Uau!

─ Mas, mudando de assunto, Luiz, eu fico feliz de você ter desistido de ir observar o cometa...

─ Oras, mas porquê você diz isso, querida? 

─ Por que assim você não foge aos seus deveres conjugais...

O maridão olhou para ela, e, com um sorriso apalermado, ficou flexionando as sobrancelhas para cima e para baixo...

Halleyluia!
 
Desde as três da manhã, grande parte do pessoal da colônia e os negros da senzala estavam acordados à espera do cometa. Muitos dos que participaram da romaria na noite anterior preferiram ficar resguardados em casa, tementes que eram à aparição, geralmente as mulheres mais velhas ─ as tais carolas ─, que agiam como se o cometa anunciasse o juízo final!...
 
─ Argemiro do céu, pel’amor de Deus, hóme! Fecha essas porta e essas janela pro gás do cometa não entrá! Põe pano e papel nas fresta de tudo o que você encontrá!

A senzala da Santa Escolástica

A maioria das pessoas se reuniu à leste da Santa Escolástica, naquele amplo anfiteatro circundante que se abre para aqueles lados, local onde podiam ver o horizonte descortinadamente. Para ser mais preciso ─ perdoem-me as minúcias ─ ficaram ao lado do cafezal, na estrada que, futuramente, levaria à Granja Paulista, propriedade do senhor Silvino Gagliardi ─ um dos acionistas da futura Usina Palmeiras ─, estrada esta que desembocava no então velho caminho para Pirassununga, ponto de onde, para o Sul, se ia para o Lote ou para cidade, e, ao Norte, para as fazendas Palmeiras e Montevidéu. Ao final da alongada rua do carreador-mestre do cafezal, ouvia-se expressões ora de maravilhamento ora de susto do pessoal ali reunido. Dentre os colonos e negros, alguns mal viram o cometa em sua integridade, pensaram ser ele um sinal do céu, no que foram invadidos por uma onda de pavor temendo que acontecesse um terremoto.
 
─ Valei-me, Jesuis!

─ Sinal no céu, castigo na terra!

Muitos daqueles que ouviram as predições do Constante Maurício se perdiam em súplicas implorando misericórdia, e a maioria dos gritos vinham dos negros. Boa parte estava prostrada no solo, uns ajoelhados, uns gemendo, outros soltando gritos de horror, e boa parte deles com as mãos levantadas para os céus implorando a Deus que os salvasse do fim do mundo. Houve quem dissesse que a atmosfera estava se alterando e que o ar estava ficando asfixiante... A maioria bebia nesta hora, mas não era por motivos de comemoração, e sim, para se entorpecer caso o pior acontecesse. Muitas bebidas rústicas eram servidas, como jacuba, capilé, anisete e jeropiga entre os italianos, já que vinho era algo meio raro naquela época, mas enquanto todos degustavam suas bebidas, os negros tragavam aluá ou cachaça como nunca. 

─ Me dê essa garrafa, qu’eu quero virá tudo! 

─ Mais esta é cachaça do bairro Aurora, aquela quiocê num gosta! 

─ Nesta hora eu bebo até chumbo derretido! 

*   *   * 

Halley e o planeta Vênus visto por entre a mata
Outra dupla ─ me refiro ao Michelangelo e o Pinocchio  também dois autênticos kindreds spirits, diria   preferiram descer até o córrego Araruna e lá, sozinhos, foram beber, tratar de seus planos secretos e, naturalmente, observar o cometa.

Mal chegaram, o Michelangelo ficou ali em frente ao rio, ensimesmado, com o olhar parado fito num ponto indeterminado feito um martim-pescador olhando as águas. Súbito, despertou:


─ Afinal, Pinocchio: nós viemos aqui para quê?


─ Se esqueceu que temos de estudar e planejar o que faremos a hora em que o cometa aparecer?


─ Oh, sim!... e vai demorar muito para começar a aparecer?


Movendo a mão para cima e soltando estalos com o polegar e o dedo médio para realçar a sensação de tempo a decorrer, respondeu o Pinocchio:


─ Ih, tem mais uma meia hora ainda, Michelangelo.


*   *   * 

Tempo decorrido e planos ajustados, por uma grande sorte, ladeado pelas muralhas de Mata Atlântica da reserva da Santa Escolástica, lá estava o grande cometa se postando bem ao centro do curso d'água, e tão brilhante estava que sua imagem se refletia claramente nas águas.

─ Veja, Pinocchio, olha que maravilha esta vista!

─ Jamais imaginei que ia ver algo assim um dia em minha vida! E o que é aquela luz à direita do cometa, uma estrela?

─  Não, aquilo é o planeta Vênus.

─ Incrível!

─ Está muito lindo isso, mas não vamos nos demorar muito aqui não, pois lembre-se que teremos que cumprir nosso plano bem antes que amanheça, ou você se esqueceu?

 Não me esqueci não, Pinocchio, fique tranquilo.

*   *   * 

E o fanfarrão do Nero, solitário em meio ao descampado, se deliciava com sua champanhe francesa enquanto observava o esplendor do deslumbrante astro. Ao notar algo como um gases sutis sendo ejetados no final da cauda, ele fez um brinde ao cometa e disse: 

─ Halleyluia! Que lindo! A cauda desse cometa parece jorros de champanhe!

 *   *   *

O Constante, sabendo que ele estava ali naquele local privilegiado, para lá se dirigiu. 

─ Você por aqui, Constante! 

─ Conheço bem as vantagens desse local, Nero, e esperava ficar sozinho aqui, longe daquela lamúria toda da negraiada e das carolas. 

─ Fique tranquilo, que eu não vou causar incômodo algum... 

E, dividindo a champanhe com o amigo, ambos puseram a observar o cometa e trocar impressões. 

─ Vendo algo tão imponente como esse cometa, eu penso na existência de... o Constante interrompeu:  

─ Deus! 

─ Não: Flammarion... 

─ Engraçadinho!... Nossa, mas que cheiro horroroso veio com a brisa! Será o gás do cometa? 

─ Não: fui eu que fiz necessidades ali atrás da bananeira... 

─ Agora é que o Mundo acaba mesmo! 

─ Engraçadinho!... 

O Constante deu um grito: 

─ O fim está próximo! 

─ Halleyluia!

Halley em 15-5-1910

 
Ao amanhecer

Quando os primeiros clarões da aurora se esboçaram sutilmente na linha do horizonte, já podia se ouvir ao longe a ouverture selvagem dos gritos agudos das saracuras três-potes e o gargalhar áspero das seriemas, que reberveravam claramente na fina e límpida atmosfera do amanhecer. O cometa não sumiu com a claridade solar, mas ficou ainda visível em meio ao amarelado da barra do dia, embora brilhando tenuamente. Desnecessário dizer que, com exceção do Nero e do Constante, os outros observadores não notaram isto.

Pouco mais de meia hora depois, o dia estava nascendo, e a noite se despedia, mas se despedia com grande paz entre o pessoal da vigília. Assim, penso que, depois de toda a deslumbrante contemplação, à ninguém seria lícito duvidar da união íntima entre o homem e o Universo, muito embora, nesta época, poucos tinham ciência de que os cometas são semeadores de vida. Aos privilegiados, vinha à convicção de que deveria haver um propósito no todo, e que os seres humanos são partes deste propósito na incomensurável imensidão do Universo ─ pelo menos o Nero e o Constant eram dois desses privilegiados capazes de vislumbrar o mistério e o sentido que transcendem nosso globo em sua translação pelo Sistema...

Amanhecer na Santa Escolástica

Ainda, obviamente, não existia a imensa chaminé da Usina Palmeiras construída pelo David, de modo que as primeiras claridades solares iluminaram antes de tudo ambos os morros das fazendas Morro Alto e Belmonte, mirantes onde, certamente, muitos fazendeiros passaram a noite observando o cometa. Não posso me esquecer de outro morro local ─ de menor altura, porém ─, o de uma fazenda onde meus avós maternos viveram poucas décadas depois: o agradável mirante da fazenda Santa Clementina, ali, um pouco acima da Usina Palmeiras. Certamente, dali se tinha uma ótima vista, mas não posso garantir que nele estiveram fazendeiros da região, mas no da Morro Alto, ah, eu tenho toda a certeza de que um casal de jovens ciosos foram os primeiros a se beneficiarem dos primeiros clarões da aurora... 

 
Meia hora depois, o dia estava nascendo e a noite morria lentamente, mas com grande paz. Banhados no incomensurável amarelado da aurora, pelo menos o Nero e o Constante, satisfeitos, vislumbravam intimamente esse mistério e o sentido que transcendem o globo girante em que vivemos.
 
*   *   *
 

Quando todos retornavam para suas casas, felizes e aliviados do “fim do mundo” que não veio, barulhentos bandos sucessivos de papagaios, araras e maritacas passavam voando alto como que festejando um renascimento, e muitos vinham pousar nos coqueiros da fazenda para a primeira refeição matinal. Das matas abaixo da fazenda, beirando o imenso tanque que lá existe, vinham cantorias intensas de, como diria Guimarães Rosa, "pássaros de ouvir sem ver", pássaros hoje raros na região, como surucuás, udus, jacutingas, tovacas e jaós, que davam suas boas-vindas ao belíssimo dia que se anunciava. Porém, desde a alvorada, muitos estranharam algo: 

─ Rebelatto, reparou uma coisa?!
 
─ Que coisa, Matteo?
 
─ Que os galos nossos não cantaram?!
 
─ Ué! Será que, por causa do cometa até os galos ficaram com medo e não cantaram?!
 
Chegando na colônia, foram checar e notaram que não havia bicho algum nos galinheiros, sequer uma franga para uma canja de galinha para uso da Pascoalinna parteira! Galos, galinhas e pintainhos, também galinhas-de-angola e perus, todos, todos roubados por não se sabe quem. Até os ovos levaram, mas, estranhamente, encontraram um único ovo oculto no meio do capim de uma poedeira, um ovo de proporções anormais, meio amarelado que...
 
─ Gigliolla do céu, venha ver este ovo! Corra!
 
─ O que tem ele, Gianlucca?!
 
─ Sua casca, veja, veja!
 
Estranhamente, a casca trazia o nítido desenho de um cometa!
 
─ É mau-sinal, isto, sinhozinho Nero! ─ lamuriou o Seu Benedito vendo o curioso ovo horas depois.
 
─ Também acho...

 
 
Estranho sumiço...
 
Na manhã seguinte os dois almofadinhas não apareceram para tomar o depoimento das pessoas e dar sua recompensa. Na reunião embaixo da figueira, só se falava do roubo das galinhas. Um italiano teve um estalo:
 
─ Quer saber quem roubou nossas criações, Guglielmo?
 
─ Quem?
 
─ Oras, aqueles dois almofadinhas: o Pinocchio e o Michelangelo! Quando todos fomos ver o cometa, eles devem ter aproveitado e roubado as criações! Lembram dos gaiolões na carroçaria do auto-caminhão deles? Pois então...
 
─ Mas as pessoas que não foram ver o cometa e ficaram em casa iam ouvir o cacarejar dos bichos sendo roubados.
 
─ Eles devem ter aproveitado o badalar dos sinos e a salva de morteiros para fazer o roubo.
 
─ Realmente, Ettore, deve ser isso mesmo! 

O fato foi confirmado depois quando encontraram um saco de aniagem caído perto de um dos galinheiros, bem como diversos canudos de bambu-taboca chamuscados e cheirando à pólvora, todos jogados num canto de um pé de bananeira no entorno do casario, onde, por sinal, encontraram uma bela defecada recente, cujos fundilhos foram limpos com uma nota fiscal de um fogueteiro de São Paulo. Como se vê, tudo foi planejado perfeita e meticulosamente pela dupla. 

─...aqueles tocos de bambu-taboca eram roqueiras, Pietro. Um dos dois espertinhos deve ter soltado os fogos enquanto o outro roubava as galinhas!

─ Dois malandros muito espertos! E nós caímos naquela conversa de santinhos dos dois!

─ Que cara-de-pau aquele tal de Pinocchio! ─ indignou-se o Guglielmo.

─ Aquele Michelangelo deveria ser apedrejado! ─ vociferou o Pietro.

─ Olha esta nota fiscal com o qual o infeliz limpou o rabo: não é do fogueteiro Alves Leitão aqui de Araras, mas é de São Paulo. O Leitão faz roqueiras com varetas de vassourinha e cravorana e as de São Paulo é vareta de taquara.

─ Hummm...

Daí que o dia passou, a tarde caiu, e nada dos dois jovens almofadinhas aparecerem para colher os depoimentos e entregar as combinadas recompensas.
 
O administrador rosnou:
 
─ Dois malditos! Foram eles mesmo que roubaram nossas crias! Caímos feitos patinhos!
 
Um preto ironizou:
 
─ Nóis caímo memo é feito pintinho!...
 
O feitor não gostou do gracejo e ameaçou:
 
─ Cala essa boca, negro! Só não te dou uma relhada porque decretaram o 13 de Maio!
 
 
O Fiore e seu primogênito

O David, em 1957,
três anos antes de falecer
─ ...quando o cometa vai voltar, Fiore? Li no Fanfulla que só daqui há 76 anos.

 
─ Nossa, é muito tempo!
 
─ Que ano vai ser?
 
─ Hummm... 1910 mais 76... 1986, então.
 
─ Nós não vamos estar vivos até lá!
 
─ Mas nossos filhos vão. Bem velhinhos, mas vão.
 
─ Se eu durar até os 85 anos, vou vê-lo, mas eu duvido  ─ observou o pequeno David, na altura de seus 9 anos.
 
─ Não é todo mundo que vive até os 85 anos. Para chegar aos 70, hoje, já é difícil.
 
E o David poetizou...
 
─ Mas se eu viver até lá, quando revê-lo, vou perguntar a ele: “Oi, Seu Halley, lembra de mim?!”


O Fiore finalizou:
 
Depois desse cometa, agora só falta a Itália atacar a Turquia!
 
─ Halleyluia! ─ gritou a Emília fazendo um trocadilho!
 
─ Que é isso, mulher?! Será que o cometa está enlouquecendo você também?!

─ Eu ouvi o seu Nero dizer isso, e achei legal!
 
E realmente, houve quem enlouquecesse: em Gabirobas, de medo do cometa, uma preta possessa se suicidou se jogando numa cisterna. Na porta da capela da fazenda Santa Cruz, após o término do Angelus, uma senhora olhou para o céu, viu aquilo tudo e caiu morta. Disseram que foi “impressão de terror do cometa".
 
Que imaginação!...
 
─ Essa espada de fogo vai cortar o Mundo no meio! Valei-me, Jesus!
  
A catástrofe do cometa, segundo a revista Fon-Fon,  Nº 21, 21-6-1910


Prestação de contas

Na manhã seguinte, o pessoal se reuniu embaixo da figueira, e alguém lembrou de trazer um bule de café. Ainda com uns restolhos de esperança, o pessoal até esperou a visita dos almofadinhas, mas nada.

─ Então o Mundo não acabou?

─ Pois é...

─ Bom, já que os dois almofadinhas não apareceram, que tal cada um dizer o que viu?

─ Ótima ideia!

─ Vamos começar por você, Constante.

Não sei se alguém viu isso, mas teve uma hora que a cabeça do cometa parecia estar se desfazendo em pequenas estrelinhas luminosas, que em seguida também se desfizeram numa brilhante chuva de faíscas, que sumiram depois de alguns minutos! Foi lindo aquilo!

─ Eu vi!

─ Eu também!

O Constante tinha mais para dizer:

─ Cerca de uma hora depois, eu reparei no céu umas faixas bem longas que, certamente, era a própria cauda do cometa.

Constante continuou:

A coma do Halley

─ Ali, por volta das três e meia da madrugada, já dava para notar que aquilo era a cauda mesmo, que devia se estender por quase metade do céu. Pouco antes de começarem a aparecer as barras do dia, ela era claramente visível, formando aquele imenso farol luminoso pelo céu, que, eu calculo, devia atingir quase 120 graus, ou seja, mais de 2/3 do céu tomado pelo cometa! Olha, no final da cauda, em sua parte mais larga, acho que caberiam nela, brincando, brincando, umas 15 luas cheias alinhadas lado a lado. Com sua passagem, até o brilho de Vênus empalideceu.

─ Muito interessante! ─ opinou o Nero, e fez seu pequeno depoimento:

─ ...foi nesses momentos que o cometa mostrava o seu poder de fogo, e foi possível vê-lo em seu máximo esplendor, fulgurante como nunca e com a cauda que crescia em tamanho e luminosidade a olhos vistos. Sua cabeça era algo como uma estrela enorme e fulgurante, com um núcleo muito grande e luminoso, de onde partia a cauda, que num certo momento foi se tornando alaranjada, se abrindo como um facho comprido de luz a partir do horizonte leste.

*   *   *

A velha figueira da fazenda Santa Escolástica 
Após o jantar, novamente as famílias se reuniram sobre a figueira para falarem sobre o cometa. Em cada depoimento, sempre uma novidade ou outra, muitas coincidências, às vezes um ponto de vista único, frequentes opiniões díspares, ideias estapafúrdias com respeito ao brilho, uns chegando mesmo a dizer que ele transformou a noite em dia! Mas, vamos aos depoimentos.

Sob a fronde da figueira, abastecidos com um providencial bule de café, os depoimentos tiveram vez.

Concetta, uma linda menina, empolgada falou:

─ Nunca, na minha vida, assisti a um espetáculo tão bonito da natureza assim! Eu fiquei mais feliz ainda, pois minha mãe me lembrou que, pela idade que eu tenho, eu poderei voltar a vê-lo lá no futuro, mas disse que eu vou estar bem velhinha!
 
A pequena Tiziana, inocentemente esnobou:
 
─ Nossos pais e nossos avós imaginavam que se o cometa batesse na Terra, todo mundo ia morrer! Mas, nós crianças vimos o cometa felizes, sem medo da morte! Uma coisa tão linda como aquela não poderia fazer mal a ninguém, não é verdade?
 
Giácomo, um jovem lavrador, exagerou:
 
─ Quando pus os pés para fora de casa e sai na escuridão, tive a impressão que a cauda do cometa estava me envolvendo!  

O Del Ciello, como que poetizando, deu seu parecer:
 
─ Aquela aparição fulgurante parecia preencher minha cabeça! Ele parecia feito de ouro, era um sonho, uma fantasia criada por minha imaginação! Eu me sentia como se tivesse no espaço junto dele! Foi uma experiência e tanto, que nunca mais vai se apagar da minha mente!
 
Houve verdadeiros poetas, como o Nava, um sujeito muito culto:
 
─ A cauda parecia ser feita de neve e prata, e comia a refulgência das estrelas, numa noite que alternava brancos e negros absolutos!
 
Poucos entenderam...
 
O Antonio Candido, um caipira letrado, exagerou:
 
─ A noite era um dia prateado!
 
Halley 13-5-1910, em Grand Harbour, Malta, por Giuseppe Cali
Aliás, a mãe dele disse que acordou no meio da noite porque havia uma estranha luz entrando pela janela como se fosse feita de leite! 
Candido foi e acordou a irmãs, e uma delas, mocinha culta como o irmão, disse:
 
─ Era uma grande bola luminosa que estreitava e se abria de novo atrás, numa bola maior! Tudo ficava banhado numa luminosidade indescritível, como se a noite fosse um dia prateado!
 
E o Austragésilo, abestalhado:
 
─ Meu Deus, e impossível imaginar que existe um astro deste tamanho, ocupando quase metade do céu!
 
O Guião fez um depoimento sereno e deveras esclarecedor:
 
─ Era um espetáculo! O cometa tinha a forma de uma estrela enorme, com uma cabeça muito grande e luminosa, depois saía a cauda, que ia se abrindo em forma de leque. Era assombroso, gente!
 
A inteligente menina Elvira Gonçalves de Oliveira, que todos tratavam por Zica, foi de uma ternura a toda prova, e depôs com entusiasmo:
 
─ ...aos poucos, surgiu uma estrela azul, brilhante! Na cauda, havia pontas! E nas pontas, alguma coisa parecida com dínamos, que rodopiavam! A cauda parecia subir e descer! Aquela coisa maravilhosa começou a subir, subir e desapareceu no céu! Era como se fosse uma pipa, alçando voo no céu!

Uma senhora, a dona Almerinda, trouxe novidades, pois foi a única que se referira aos meteoritos que surgiam no céu à direita próximo ao final da cauda: 

─ Era como uma vassoura de fogo que descia do céu e varria a Terra de luz, e, em torno daquela bola de fogo lá no alto, caíam os astros.

O menino Angelo Smolari viu no céu uma cabeça brilhante, semelhante a de um polvo, e a cauda, extensa, fazia uma espécie de curva acompanhando a linha do horizonte.
 
Um sujeito, tratado pelo sobrenome Levart, disse que havia duas luas no céu, mas, aos poucos, surgiu uma cauda comprida com muitas pontas, e tinha o formato de uma vassoura.
 
A encantadora menina Maria Augusta Belisária desabafou:
 
─ Finalmente, eu pude olhar de frente, pela primeira vez, a estrela de rabo!
 
O Halley visto na cidade de Ipu, no Ceará, em maio de 1910
Por sua vez, o Carlinhos, um sujeito magrinho, de rosto afilado, num depoimento assaz poético e magistral, romantizou a visão:
 
─ Esta madrugada, ao contrário das noites anteriores, o cometa apareceu mais nítido, denso de luz, e airosamente deslizou sobre nossas cabeças sem dar sinais de que ia nos exterminar. No ar frio, um véu dourado pareceu baixar na Santa Escolástica, tornando irreal os contornos da fazenda, do casario da colônia, da senzala e da mata. Quando ele apareceu por inteiro, parecia que estávamos banhados de ouro, e sentimos que estávamos livres da matança que não aconteceu!

A menina Arminda Bellini Cagnin, moradora da rua Santa Cruz, próximo à citada capelinha, que nesta tarde visitava a fazenda com seu pai, havia visto o cometa a partir da praça Barão, na época, uma jardim com poucas árvores. Ela comentou o que viu:

─ Era uma estrela muito grande e se posicionava bem em cima da igreja Matriz. O rabo, enorme e largo, prolongava-se do outro lado da cidade lá pelos matos da fazenda São Joaquim, e ia até nossas vistas não mais o alcançarem. Eu comentei com meu pai: “Nossa pai, o rabo da estrela se enfiou no meio do mato!”, ao que meu pai respondeu: “Não. Parece que o céu termina no mato, mas lá ele é alto como aqui”. O cometa, para mim, parecia uma estrela comum, mas com muita luminosidade.

Esperando pacientemente que todos falassem, Nero, o visitante, se excedeu:

─ Gente, aquela aparição era tão fantástica, mas tão fantástica que parece ser impossível se fazer uma descrição à altura de sua imponência e majestade, tampouco parece também não haver um meio de encontrar um ponto de exclamação suficientemente grande para finalizá-la, mas, esforcemo-nos! Então, o que eu posso dizer é que...


Me desculpem, amigos, interromper a fala do distinto visitante, mas eu lhes garanto que um astro assim, único como o Halley nesta noite, só se descreve por meios de superlativos ─ e, na verdade, foi o que o Nero fez ─, e o fez com tal maestria e eloquência que eu, cioso, resolvi guardar só para mim o seu depoimento, mas eu prometo que um dia aind eu lhes conto...


A praça Barão de Araras, cenário onde o cometa podia ser visto abertamente 16 anos depois
 
                                      
Caixeiros viajantes...
 
Ao final da tarde do mesmo dia, três sujeitos a bordo de um auto-caminhão deixavam Araras em direção à São Paulo. Dois, desnecessário dizer, eram os tais almofadinhas Pinocchio e o Michelangelo, na verdade, dois caixeiros viajantes 
─ ou cometas, como queiram , e o outro... bem, o outro...
 
─ Querida, que é feito do Nero fogueteiro que sumiu?!
 
─ Verdade, Luiz! O danado, acho que foi embora e nem se despediu da gente!
 
Muito ao longe, lá próximo ao acesso bairro rural Facão, às margens de uma mata na estrada para São Paulo, o terceiro sujeito no caminhão abriu uma bolsa, tirou uns canudos de roqueira e uma garrafa de... Veuve Cliquot, e gritou:
 
─ Seus dois cometas malandros: para esse caminhão, que é chegada a hora de festejar o maior roubo de galinhas da história de Araras!
 
 E, abraçando lado a lado seus parceiros de ladroagem, exultou:
 
─ Vamos acender essas roqueiras, amigos, brindar e tacar fogo no mundo! 

─ Façamos o fogo que o Halley não fez, Nero! ─ gritou o Pinocchio.

Trecho da estrada de rodagem São Paulo a Ribeirão Preto, ano 1920, na cidade de Araras. 

*   *   * 

Para que eu pudesse pontuar o conto com um final feliz, bem a contento dos leitores (mais das leitoras) ─ ou pelo menos a contento de um certo casal ─, torciam eles, quiçá,  com as mesmas esperanças da esperta Marietta  que cria piamente que sua filha e o almofadinha terminariam juntos, unidos feito carrapicho amor-agarradinho mas, hão de ver que a felicidade foi sacrificada pela patifaria...

Pois bem. Passados nove meses, nascia mais uma criança na Santa Escolástica, e com ela ─ ironia do destino ─, parecia morrer de vez a ingenuidade de um certo e notório caipira, que  ironizou: 

─  O Seu Nero falô que os cometa fecunda a Terra, mais parece que o cometa fecundô memo foi a nossa fia!... E agora, óia só: mais uma boca prá alimentá na famía! Ô, armofadinha mardelazento!...  

E a Marietta, que deixara saudades nas alegres badernas noturnas de outrora como muié-dama no casario do largo da Capela de Santa Cruz, exultou:

─ Como é lindo e inteligente nosso netinho, meu Pinóquinho do coração!

E o Simplício bateu na mesma tecla do velho estribilho: 

─ Puxou para mim na inteligência e para você na formosura, Marietta, e não retruca senão eu te lanho no reio!...

*   *   * 

Parado na porteira da fazenda e olhando para o estradão, o tal de Juó, aquele do "Sunetto...", desabafou indignado: 

─ Ladró di galligna, inveiz di griá vacca pra vendê garne di vacca na Inglaterra!



* Este capítulo faz parte da série de 11 livros memoriais sobre a Usina Palmeiras: "APÓLOGO 11 - OS DEVANEIOS DE UM MOLEQUE NA ERA DA CONTRACULTURA.- Volume 0 — Childwood — janeiro de 1961 a fevereiro de 1967” . Os livros estão em processo de confecção sem prazo para lançamento.

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